sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

ENVENENAMENTO DE LENIN?*



L. Trotsky                              

“Stalin havia confessado a Kamenev e Dzerzhinski, seus aliados da época, que seu maior prazer na vida era vigiar atentamente um inimigo, preparar tudo nos mínimos detalhes, vingar-se dele sem compaixão, e depois ir dormir.”

Durante os dez anos do meu atual exílio, os agentes literários do Kremlin vêm se livrando da necessidade de responder adequadamente a qualquer coisa que eu escreva sobre a URSS, fazendo alusões ao meu “rancor” por Stalin. Contudo, Stalin e eu fomos separados por eventos tão inflamáveis que todos os sentimentos pessoais foram consumidos pelas chamas e reduzidos a cinzas. Stalin é meu inimigo. Mas também Hitler é meu inimigo, também Mussolini o é, e também muitos outros. Hoje me restam muito poucos sentimentos pessoais dirigidos a Stalin. É como se se tratasse do general Franco ou do Mikado.

Apresento nesse artigo fatos surpreendentes a respeito de como um revolucionário provinciano se tornou o ditador de um grande país. Todos os fatos que menciono, todas as referências e citações, podem ser confirmados por publicações soviéticas oficiais ou por documentos conservados em meus arquivos.


O último período da vida de Lênin foi cheio de intensos conflitos entre ele e Stalin, que culminaram numa completa ruptura entre os dois. Como sempre, não havia nada de pessoal em relação à hostilidade que Lênin nutria por Stalin. Mas à medida que corria o tempo, Stalin tirou vantagens crescentes das oportunidades que seu cargo apresentava para se vingar de seus oponentes. Pouco a pouco, Lênin se convenceu de que alguns traços da personalidade de Stalin eram claramente hostis ao partido. Daí amadureceu sua decisão de reduzir Stalin a um simples membro do Comitê Central.

A saúde de Lênin sofreu uma súbita piora no final de 1921. A primeira crise aconteceu em maio de 1922. Durante dois meses ele foi incapaz de se mover, falar ou escrever. Em julho, ele começou uma lenta convalescença. Em outubro, voltou do campo para o Kremlin e assumiu novamente o seu trabalho. Em dezembro, abriu fogo contra as perseguições de Stalin. Declarou-se contrário a Stalin na questão do monopólio do comércio exterior e estava preparando para o próximo congresso do partido um discurso que seria uma “bomba contra Stalin”.

“Falemos francamente”, escreveu Lênin em 2 de março, “O Comissariado da Inspeção não desfruta hoje da menor autoridade... Não há entre nós instituição pior que o nosso Comissariado de inspeção do Povo”. Na chefia da inspeção estava Stalin. Ele compreendeu muito bem as implicações dessas palavras.

Em meados de dezembro de 1922, a saúde de Lênin o obrigou a ausentar-se da conferência. Imediatamente, Stalin passou a esconder de Lênin muitas informações. Blocos de medidas foram instituídos contra as pessoas mais próximas a Lênin. Lênin se inflamou, alarmado e indignado. Sua principal fonte de preocupação era Stalin cujo comportamento se tornava mais confiante à medida que os relatórios dos médicos sobre a saúde de Lênin se tornavam menos favoráveis. Naqueles dias, Stalin se mostrava taciturno, ríspido com seu cachimbo firmemente preso entre os dentes e um brilho sinistro nos olhos amarelados. Seu destino estava em jogo.

Várias linhas ditadas por Lênin em 5 de março de 1923 a um estenógrafo de confiança anunciaram secamente a ruptura de “todas as relações pessoais e de camaradagem com Stalin”. Essa nota é o último documento sobrevivente de Lênin. Exatamente na noite seguinte, ele perdeu sua capacidade de falar.

O chamado “testamento” de Lênin foi escrito em duas ocasiões durante sua segunda enfermidade: em 25 de dezembro de 1922 e em 4 de janeiro de 1923. “Stalin, tendo se tornado secretário-geral”, declara o testamento, “concentrou um imenso poder em suas mãos e não estou certo de que ele sempre saiba como usar esse poder com suficiente cautela”. Dez dias mais tarde, Lênin acrescentou: “Proponho aos camaradas procurar uma maneira de retirar Stalin desse posto e nomear para tal cargo um outro homem”, que seria “mais leal, menos inconstante” etc.

Quando Stalin leu pela primeira vez o texto, vociferou palavrões dirigidos a Lênin. O testamento não só não conseguiu pôr um fim à luta interna, que era o que Lênin desejava, mas a intensificou ao mais alto grau. Stalin não mais poderia duvidar de que o retorno de Lênin à atividade significaria sua própria morte política. Apenas a morte de Lênin poderia abrir o caminho para ele.

Acompanhei, dia-a-dia, o curso da segunda enfermidade de Lênin através do médico que tínhamos em comum, o Dr. Gaitier.

“É possível, doutor que isso, seja o fim?”, minha esposa e eu lhe perguntamos várias vezes.
“Isso é algo que realmente não se pode afirmar. Vladimir Ilyich pode conseguir ficar de pé novamente. Ele tem um organismo forte”.

“E suas faculdades mentais?”.
“Basicamente, ficarão intactas.

Nem todas as notas, talvez, manterão sua pureza anterior, mas o virtuose continuará, um virtuose”.

Entretanto, numa reunião dos membros do Politburo, com Zinoviev, Kamenev e eu, Stalin nos informou, depois que o secretário saiu, que Lênin o havia chamado de repente e lhe pedira veneno. Lênin estava perdendo a fala outra vez, considerava sua situação sem esperanças, previa que iria ter um novo derrame e não confiava nos seus médicos. Sua mente estava perfeitamente clara e seu sofrimento era insuportável.

Lembro-me que, ao ver o rosto de Stalin naquele momento, achei-o estranho, enigmático e fora de sintonia com as circunstâncias. Tinha um sorriso doentio, fixo como uma máscara. Lembro-me da expressão de Kamenev, pálido e silencioso, ele que gostava de Lênin sinceramente, e a de Zinoviev, perplexo como em todos os momentos difíceis. Será que Stalin já tinha lhes revelado o pedido de Lênin? Ou será que para eles, seus aliados no triunvirato, o fato vinha como uma surpresa, tanto quanto para mim?

“Naturalmente, não podemos nem levar em consideração esse pedido”! — exclamei. “O Dr. Gaitier ainda não perdeu a esperança. Lênin ainda pode se recuperar”.
“Eu já disse a ele tudo isso”, respondeu Stalin com certa irritação. “Mas ele não quer ouvir a voz do bom senso. O velho está sofrendo e diz que quer ter o veneno à mão. Vai usá-lo quando estiver convencido que seu estado não tem mais solução”.

“O velho está sofrendo”, Stalin repetiu, com o olhar vago. Não houve votação, já que não estávamos numa reunião formal, mas quando nos despedimos havia um consenso implícito de que trazer veneno a Lênin estava fora de cogitação.

Antes de sair, insisti: “Isso está fora de cogitação. Ele pode sucumbir a uma depressão passageira e dar um passo sem volta”.

Apenas alguns dias antes, Lênin havia escrito o implacável pós-escrito ao seu testamento. Alguns dias depois, rompeu todas as relações pessoais com Stalin. Por que, então, haveria de fazer esse seu trágico pedido justamente a Stalin? A resposta é simples: ele acreditava que Stalin seria a única pessoa que concordaria com seu pedido; uma vez que tinha interesse direto em fazê-lo. Ao mesmo tempo, é possível que ele quisesse colocar Stalin à prova, para verificar se esse de fato aproveitaria a oportunidade. Naqueles dias, Lênin não pensava apenas na morte, mas também no destino do partido.

Mas será que Lênin de fato pediu veneno a Stalin? Ou terá sido essa história toda nada mais que uma invenção de Stalin para preparar o seu álibi? Ele não tinha por que temer uma investigação, pois ninguém poderia interrogar Lênin, já tão doente.

Mais de dez anos antes dos famosos processos de Moscou, Stalin havia confessado a Kamenev e Dzerzhinski, seus aliados da época, que seu maior prazer na vida era vigiar atentamente um inimigo, preparar tudo nos mínimos detalhes, vingar-se dele sem compaixão, e depois ir dormir.

* * *

Durante o último dos grandes julgamentos, realizado em março de 1938, um lugar especial no banco dos réus foi ocupado por Henry Yagoda. Havia uma ligação secreta entre Stalin e Yagoda, que trabalhara na Cheka e na GPU durante 16 anos, primeiro como chefe-assistente e depois como chefe, atuando o tempo todo como o auxiliar de maior confiança de Stalin contra a oposição. O sistema de confessar crimes que nunca foram cometidos foi posto em prática, se não criado, por Yagoda. Em 1933, Stalin premiou Yagoda com a Ordem de Lênin, e em 1935 o promoveu a comissário-geral da Defesa do Estado, ou seja, marechal da Polícia Política. Agraciar Yagoda significava dar honrarias a uma entidade não existente, a alguém desprezado por todos. Os velhos revolucionários trocaram olhares de indignação.

Na época dos grandes expurgos, Stalin decidiu liquidar esse seu companheiro que sabia demais. Em abril de 1937, Yagoda foi preso e por fim executado.

No julgamento, revelou-se que Yagoda, que era farmacêutico de profissão, tinha um armário especial com venenos, de onde tirava vidrinhos que confiava aos seus agentes. Tinha também ao seu dispor vários toxicologistas, para os quais montou um laboratório especial, dotado de recursos ilimitados e não controlados. Naturalmente, não é possível que Yagoda tenha organizado tudo isso apenas para as suas necessidades pessoais.

As suspeitas de que Stalin tinha ajudado um pouco as forças destruidoras da natureza no caso de Máximo Gorki começaram a surgir logo depois da morte do grande escritor. Uma das tarefas do julgamento de Yagoda era livrar Stalin dessa suspeita. Daí vinham as repetidas declarações de Yagoda, dos médicos e de outros acusados, de que Gorki era “amigo íntimo de Stalin”, “uma pessoa de confiança”, “um stalinista entusiástico”. Se apenas a metade disso fosse verdade, Yagoda não teria decidido matar Gorki, e menos ainda confiado esse plano a um médico do Kremlin, que poderia tê-lo destruído mediante um simples telefonema a Stalin.

Durante os dias do julgamento, as acusações, assim como as confissões, me pareceram fantasmagóricas. Mas as informações e análises posteriores me obrigaram a modificar essa opinião. Nem tudo nos julgamentos era mentira. Nem todos os envenenadores estavam sentados no banco dos réus. O principal deles estava chefiando o julgamento por telefone. Foi apenas Yagoda quem desapareceu; seu armário de venenos permanece.

No julgamento de 1938, Stalin acusou Bukharin de ter preparado um complô contra a vida de Lênin, em 1918. Bukharin, ingênuo e ardoroso, venerava Lênin, o adorava. Suas intenções não poderiam pautar-se pelas ambições pessoais. Todas as acusações dos julgamentos de Moscou seguem este padrão: Stalin achava que a melhor maneira de desfazer as suspeitas contra si mesmo era atribuir o crime a um adversário e forçá-lo a “confessar”.

Lênin pediu veneno — se é que realmente o fez — no fim de fevereiro de 1923. No início de março, ele ficou novamente paralisado. Mas seu poderoso organismo, sustentado por sua força de vontade, conseguiu reerguer-se. Na chegada do inverno, ele começou a melhorar aos poucos e ter mais liberdade de movimentos; lia um pouco, e pedia para outras pessoas lessem alto; a capacidade de falar começou a voltar. Os médicos foram ficando cada vez mais esperançosos.

Stalin procurava o poder, todo o poder, a qualquer preço. Ele já o detinha firmemente. Seu objetivo estava perto, mas o perigo que vinha de Lênin estava ainda mais perto. Ao seu lado estava o farmacêutico Yagoda.

A notícia da morte de Lênin me foi dada quando eu e minha mulher estávamos a caminho do Cáucaso, onde eu esperava livrar-me de uma infecção cuja causa ainda é um mistério para os meus médicos. Imediatamente, telegrafei ao Kremlin: “Creio necessário voltar a Moscou. Quando será o enterro”? A resposta veio dentro de uma hora: “O funeral será no sábado. Você não conseguirá voltar a tempo. O Politburo julga que em vista do seu estado de saúde, você deve seguir viagem para Sukhum. Stalin”. Por que tanta pressa para o enterro? Por que justamente no sábado? Mas eu não quis pedir que a cerimônia fosse adiada só por minha causa. E só quando cheguei em Sukhum fiquei sabendo que o enterro fora adiado para domingo.

Era mais seguro para eles, de todos os pontos de vista, manter-me à distância até que o corpo fosse embalsamado e as vísceras cremadas.

Quando perguntei aos meus médicos em Moscou qual fora a causa imediata da morte de Lênin, pela qual eles não esperavam, eles não conseguiram dar uma explicação. A autópsia foi executada com todos os procedimentos necessários; o próprio Stalin tomou conta disso. Mas os médicos não estavam à procura de veneno. Segundo eles, a política fica acima da medicina.

Só reatei relações pessoais com Zinoviev e Kamenev dali a dois anos, depois que eles já tinham rompido com Stalin. Eles evitavam fazer qualquer referência à morte de Lênin. Apenas Bukharin, quando estava conversando em particular, fazia às vezes algumas alusões estranhas e inesperadas. “Ah, você não conhece o Koba (Stalin)”, dizia ele com um sorriso assustado. “Koba é capaz de qualquer coisa”.


Quando o teto já caiu e as portas e janelas se quebraram, fica difícil morar numa casa. Hoje há ventos frios soprando por todo o nosso planeta. Todos os princípios morais tradicionais estão cada vez mais debilitados, e não só os que vêm de Stalin. Mas uma explicação histórica não é o mesmo que uma justificação. Nero também foi produto da sua época. Mas depois que ele morreu, suas estátuas foram quebradas e seu nome apagado de todo lugar. A vingança da história é mais terrível do que a vingança do mais poderoso secretário-geral.

* Este artigo foi publicado originalmente em 10 de agosto de 1940, dez dias antes de Trotsky ser assassinado por um agente de Stalin, no México.