quinta-feira, 12 de outubro de 2017

MARX PERTURBA STABLISHMENT BURGUÊS: filme “O jovem Marx” e o boicote das grandes redes de entretenimento descartável em tempos de moralismos fascistizantes



O
filme do já experiente cineasta haitiano Raoul Peck1 faz um corte histórico e retrata a vida d’O jovem Marx a partir dos 25 anos (1843), pouco tempo antes de Marx ser expulso da Alemanha junto com a sua companheira e esposa Jenny, dando início à sua longa jornada militante até os últimos dias de sua vida, muito embora a biografia política tenha um curto alcance, até a elaboração do Manifesto Comunista em 1848. Peck sempre fora um ativista político que tem como visão de mundo utilizar o cinema não apenas como entretenimento, mas uma ferramenta configurada para transmitir conteúdo, ou seja, empenha-se numa arte engajada, militante2. Sua formação intelectual e política desenvolveram-se durante a criminosa ditadura de Jean-Claude Duvalier, o “baby doc” e a Era neoliberal de Reagan/Thatcher.

O cineasta haitiano Raoul Peck
O cinema é “O instrumento para analisar de forma mais precisa a nossa sociedade. Também como é hoje. Eu não fiz um filme sobre o passado; vou ao passado para buscar instrumentos e compreender porque o Trump foi eleito”3, explica seu intento ao dirigir O jovem Marx. Tem, por isso,  para o diretor um caráter eminentemente pedagógico.

Nesta perspectiva, o filme inicia com a fase de Marx como redator da Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), que foi a sua entrada na vida política ao deparar-se com a dura realidade material dos chamados “roubos de madeira” pelos despossuídos e a ulterior selvagem repressão por eles desencadeada a mando dos grandes proprietários de terras. Foi o despertar de Marx4, fato notadamente reconhecido por Engels5.

Abrem-se, a partir daí, os horizontes filosóficos-político de Marx. O interesse daquilo que é considerado privado (a propriedade), a miséria, o comunismo, as relações entre a filosofia e o mundo real começam a aparecer em suas dimensões mais profundas.

Precisamente pelas questões acima levantadas, no Brasil, O jovem Marx, tem sido soberbamente boicotado das telonas pelas grandes redes de cinema voltadas a shoppings centers e a cultura do entretenimento descartável. Até o presente momento, nem mesmo as salas alternativas demonstraram interesse em exibi-lo em pequena escala. O stablishment esforça-se para manter Marx proscrito. Tal situação reflete o período reacionário e de retrocesso cultural pelos quais passamos: golpe institucional contra uma presidente eleita, reformas anti-operárias, crise econômica profunda e insolúvel, avanço das concepções fascistas e pseudomoralistas nos mais diversos setores da sociedade balizado pela grande mídia corporativista.

Marx jovem vai aos poucos rompendo com idealismo
Ainda mais quando o filme trata Marx como um ser humano que, nesta condição tal vai evoluindo em seu pensamento, superando seus erros e dúvidas. Chama a atenção a semelhança física do ator (August Diehl) com a figura de Marx e o tom jocoso e irônico que lhe imputa! Da mesma forma, Stefan Konarske encarna com perfeição o papel de Friederich Engels.

Raoul Peck procura dar ênfase às cores dos personagens, quase em tom rosa-poético, perspectiva que certamente abalará aqueles que os veem como seres amargurados e despóticos, apenas como militantes sem princípios. Cabe destacar a força e personalidade que o diretor coloca nas personagens femininas. Jenny (Vicky Krieps), muito longe de ser uma figura recatada e sem importância, é a fonte de energia provocativa (sexual) de Marx6! Lá pelas tantas do filme Engels questiona Jenny acerca de que uma aristocrata estaria fazendo ao lado de um revolucionário, e eis que ela retruca: “Sem revolta não há felicidade. Revolta contra a ordem existente, contra o mundo velho. É nisso que acredito”! Quando Marx é convocado para travar conhecimentos com a Liga dos Justos na Inglaterra, Jenny foi quem mais o estimulou a participar, mesmo deixando sua família para trás por um breve período. Peck faz questão de frisar a participação de Jenny na elaboração do Manifesto Comunista como elemento ativo ao lado de Mary Burns!

Jenny foi tão importante para Marx que, quando foi obrigado a separar-se dela por conta de perseguição política (e econômica, estava mergulhado em dívidas), escreveu-lhe com ternura da Holanda: “O meu amor por você, assim que você se afastou de mim, mostrou sua verdadeira face, uma gigante, e nela todo o vigor da minha mente e todo o ardor do meu coração estão comprimidos”7.

Engels em sua juventude
A se destacar igualmente é o papel da companheira de Engels (no filme), Mary Burns (Hannah Steele), operária demitida da fábrica da família Engels por causa de sua índole rebelde. A ela coube inserir o parceiro de Marx nos meios operários da Inglaterra. Não foi fácil, mas aos poucos ganhou confiança nas organizações que surgiam, a maioria das quais anarquistas e socialistas utópicas. Sob influência política de Marx, Engels e Mary fundam a Liga Comunista, para desgosto dos anarquistas, refutando o antigo lema utópico de essência cristã “Todos os homens são irmãos”.

Como toda obra de cunho biográfico, mistura realidade com ficção, muito mais como licença poética – caso não tivesse presente esse método e conceituação não poderia ser considerada uma obra de arte! E ela o é perfeitamente. Assim, para os marxismos dogmáticos e politicamente corretos, inclusive vestais da moralidade, o encontro de Marx e Engels (setembro de 1844) poderá ferir suas convicções moralistas. Em meio a um grande porre começam a elaborar em noite insone e bêbada seus primeiros escritos como parceiros! Sem falar a forma inusitada que ambos selaram a nova amizade, que perduraria pelo resto de suas vidas, dos altos da mesa de um bar (não farei “spoiler”, assista ao filme!). Engels fica encantado com as críticas de Marx à religião e ao idealismo alemão e sugere-lhe que aprofunde seus conhecimentos estudando Ricardo, Smith e Bertham. Marx não hesita e segue à risca o conselho do novo amigo, conduzindo-o pari-passu ao rompimento com o idealismo romântico dos jovens hegelianos de esquerda. Durante todo o período retratado pelo filme, as rupturas do jovem Marx são constantes, duros, mas conscientes os embates contra os populistas – do quilate de Weitling – aos quais afirma não terem conteúdo em seus discursos: perante Bauer, Feuerbach, Stirner e as primeiras críticas a Phroudhon. Em cada uma delas os sinais de amadurecimento político.

Marx sobre Jenny: "uma gigante, e nela todo
o vigor da minha mente"
Apesar de algumas pequenas imprecisões, vale a pena assistir ao O jovem Marx, provavelmente disponível apenas em pequenas exibições como em DCE’s e sindicatos. As várias licenças poéticas – Marx nunca se encontrou com Phroudhon – têm a finalidade de demonstrar a evolução dialética do pensamento marxiano. Mesmo porque é a primeira vez que sua vida é tratada de forma não deletéria no cinema, com bastante fidelidade aos fatos e colocação das personagens reais. Por isso teve o boicote da indústria cinematográfica. Desmistifica aquele Marx idealizado pela burguesia e a classe média reacionária, a de um machista degenerado, infiel, insensível e autoritário. Só para se ter uma ideia, com conotações ficcionais, conferidos os contornos românticos, é claro, o Manifesto Comunista é elaborado a oito mãos: Marx, Engels, Genny e Mary! A vida de Marx não se fez por ele mesmo, mas com as pessoas que ele amava a sua volta e o pleno desenvolvimento das contradições sociais e econômicas de um capitalismo que mais e mais fetichiza a mercadoria e desumaniza o Ser!!!!


Notas:                                                                                      

1 Filmografia: De Cuba Traigo Un Cantar (short; 1982); Exzerpt (short; 1983); Leugt (short; 1983); The Minister of the Interior is on our Side (short; 1984); Merry Christmas Deutschland (short; 1984); Haitian Corner (1987–88); Lumumba: La mort du prophète (Lumumba: Death of a Prophet, 1992); L’Homme sur les quais (The Man by the Shore, 1993); Haiti - Le silence des chiens (Haiti - Silence of the Dogs, 1994); Desounen: Dialogue with Death (1994); Chère Catherine (1997); Corps plongés (It's Not About Love, 1998); Lumumba (2000); Profit & Nothing But! Or Impolite Thoughts on the Class Struggle (2001); Sometimes in April (2005); L’Affaire Villemin (2006), TV series; Moloch Tropical (2009); Assistance mortelle (documentary, 2013); Murder in Pacot (2014); I Am Not Your Negro (2016); The Young Karl Marx (2017)[26]


3 Idem;

4 K. Marx, “Prefácio”, Contribuição à crítica da economia política. “Minha área de estudos era a jurisprudência, à qual, todavia, eu não me dediquei senão de um modo acessório, como uma disciplina subordinada relativamente à Filosofia e à História. Em 1842-1843, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung, encontrei-me, pela primeira vez, na embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os debates do Landtag renano sobre os delitos florestais e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que o sr. Von Schaper, então governador da província renana, travou com a Gazeta Renana sobre as condições de existência dos camponeses do Mosela, as discussões, por último, sobre o livre-câmbio e o protecionismo proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu começasse a me ocupar das questões econômicas”.

5 Em A. Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels. “Sempre ouvi Marx dizer que foi pelo estudo da lei sobre o furto das madeiras e da situação dos camponeses da Mosela que ele foi levado a passar da política pura para o estudo das questões econômicas e, por isso mesmo, para o socialismo”.

6 O Barão Ludwig, pai de Jenny, iniciou Marx na sua compreensão social e política da realidade que o envolvia. Jenny era muito culta e detentora de muita verve! Marx a conheceu em 1836 quando ele tinha 18 anos. Foi companheira de Marx por 38 anos, sem jamais ter sido a “sombra” do marido, uma vez que era respeitada e admirada nos meios revolucionários da época. Ela traduzia os textos de Marx, do alemão para o francês, organizava seus escritos. O livro da jornalista Françoise Giroud, “Jenny Marx – ou, a mulher do diabo”, criou o falso mito de que Jenny seria “vítima de Marx” e desqualifica todo o legado dos dois companheiros de vida. Sem dúvida que a ligação entre os dois se dava afetiva e politicamente. A vida de Jenny estava indissoluvelmente ligada à de “Karlchen” (Marquinho)!

Mary Gabriel, Amor & Capital – A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução.