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filme do já experiente cineasta haitiano Raoul Peck1
faz um corte histórico e retrata a vida d’O
jovem Marx a partir dos 25 anos (1843), pouco tempo antes de Marx ser
expulso da Alemanha junto com a sua companheira e esposa Jenny, dando início à
sua longa jornada militante até os últimos dias de sua vida, muito embora a
biografia política tenha um curto alcance, até a elaboração do Manifesto
Comunista em 1848. Peck sempre fora um ativista político que tem como visão de
mundo utilizar o cinema não apenas como entretenimento, mas uma ferramenta configurada
para transmitir conteúdo, ou seja, empenha-se numa arte engajada, militante2.
Sua formação intelectual e política desenvolveram-se durante a criminosa ditadura
de Jean-Claude Duvalier, o “baby doc” e a Era neoliberal de Reagan/Thatcher.
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O cineasta haitiano Raoul Peck |
O cinema é “O instrumento para analisar de forma mais
precisa a nossa sociedade. Também como é hoje. Eu não fiz um filme sobre o
passado; vou ao passado para buscar instrumentos e compreender porque o Trump
foi eleito”3,
explica seu intento ao dirigir O jovem
Marx. Tem, por isso, para o diretor um caráter eminentemente pedagógico.
Nesta perspectiva, o filme inicia com a fase de Marx como
redator da Gazeta Renana (Rheinische
Zeitung), que foi a sua entrada na vida política ao deparar-se com a dura realidade
material dos chamados “roubos de madeira” pelos despossuídos e a ulterior
selvagem repressão por eles desencadeada a mando dos grandes proprietários de
terras. Foi o despertar de Marx4, fato notadamente reconhecido por Engels5.
Abrem-se, a partir daí, os horizontes filosóficos-político
de Marx. O interesse daquilo que é considerado privado (a propriedade), a
miséria, o comunismo, as relações entre a filosofia e o mundo real começam a
aparecer em suas dimensões mais profundas.
Precisamente pelas questões acima levantadas, no Brasil, O jovem Marx, tem sido soberbamente
boicotado das telonas pelas grandes redes de cinema voltadas a shoppings
centers e a cultura do entretenimento descartável. Até o presente momento, nem mesmo as salas alternativas demonstraram
interesse em exibi-lo em pequena escala. O stablishment
esforça-se para manter Marx proscrito. Tal situação reflete o período
reacionário e de retrocesso cultural pelos quais passamos: golpe institucional
contra uma presidente eleita, reformas anti-operárias, crise econômica profunda
e insolúvel, avanço das concepções fascistas e pseudomoralistas nos mais
diversos setores da sociedade balizado pela grande mídia corporativista.
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Marx jovem vai aos poucos rompendo com idealismo |
Ainda mais quando o filme trata Marx como um ser humano que,
nesta condição tal vai evoluindo em seu pensamento, superando seus erros e
dúvidas. Chama a atenção a semelhança física do ator (August Diehl) com a figura
de Marx e o tom jocoso e irônico que lhe imputa! Da mesma forma, Stefan
Konarske encarna com perfeição o papel de Friederich Engels.
Raoul Peck procura dar ênfase às cores dos personagens,
quase em tom rosa-poético, perspectiva que certamente abalará aqueles que os
veem como seres amargurados e despóticos, apenas como militantes sem princípios.
Cabe destacar a força e personalidade que
o diretor coloca nas personagens femininas. Jenny (Vicky Krieps), muito longe
de ser uma figura recatada e sem importância, é a fonte de energia provocativa (sexual)
de Marx6! Lá pelas tantas do
filme Engels questiona Jenny acerca de que uma aristocrata estaria fazendo ao
lado de um revolucionário, e eis que ela retruca: “Sem revolta não há felicidade. Revolta contra a ordem existente,
contra o mundo velho. É nisso que acredito”! Quando Marx é convocado para
travar conhecimentos com a Liga dos Justos na Inglaterra, Jenny foi quem mais o
estimulou a participar, mesmo deixando sua família para trás por um breve
período. Peck faz questão de frisar a participação de Jenny na elaboração do
Manifesto Comunista como elemento ativo ao lado de Mary Burns!
Jenny foi tão importante para Marx que, quando foi obrigado
a separar-se dela por conta de perseguição política (e econômica, estava
mergulhado em dívidas), escreveu-lhe com ternura da Holanda: “O meu amor por
você, assim que você se afastou de mim, mostrou sua verdadeira face, uma gigante, e nela todo o vigor da minha mente e todo o ardor do meu coração estão
comprimidos”7.
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Engels em sua juventude |
Como toda obra de
cunho biográfico, mistura realidade com ficção, muito mais como licença poética
– caso não tivesse presente esse método e conceituação não poderia ser
considerada uma obra de arte! E ela o é perfeitamente. Assim, para os marxismos dogmáticos e
politicamente corretos, inclusive vestais da moralidade, o encontro de Marx e Engels (setembro de 1844) poderá
ferir suas convicções moralistas. Em
meio a um grande porre começam a elaborar em noite insone e bêbada seus
primeiros escritos como parceiros! Sem falar a forma inusitada que ambos
selaram a nova amizade, que perduraria pelo resto de suas vidas, dos altos da
mesa de um bar (não farei “spoiler”, assista ao filme!). Engels fica
encantado com as críticas de Marx à religião e ao idealismo alemão e sugere-lhe
que aprofunde seus conhecimentos estudando Ricardo, Smith e Bertham. Marx não hesita
e segue à risca o conselho do novo amigo, conduzindo-o pari-passu ao rompimento com o idealismo romântico dos jovens
hegelianos de esquerda. Durante todo o período retratado pelo filme, as
rupturas do jovem Marx são constantes, duros, mas conscientes os embates contra
os populistas – do quilate de Weitling – aos quais afirma não terem conteúdo em
seus discursos: perante Bauer, Feuerbach, Stirner e as primeiras críticas a Phroudhon.
Em cada uma delas os sinais de amadurecimento político.
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Marx sobre Jenny: "uma gigante, e nela todo o vigor da minha mente" |
Notas:
1 Filmografia: De Cuba Traigo Un Cantar
(short; 1982); Exzerpt (short; 1983); Leugt (short; 1983); The Minister of the
Interior is on our Side (short; 1984); Merry Christmas Deutschland (short;
1984); Haitian Corner (1987–88); Lumumba: La mort du prophète (Lumumba: Death
of a Prophet, 1992); L’Homme sur les quais (The Man by the Shore, 1993); Haiti
- Le silence des chiens (Haiti - Silence of the Dogs, 1994); Desounen: Dialogue
with Death (1994); Chère Catherine (1997); Corps plongés (It's Not About Love,
1998); Lumumba (2000); Profit & Nothing But! Or Impolite Thoughts on the
Class Struggle (2001); Sometimes in April (2005); L’Affaire Villemin (2006), TV
series; Moloch Tropical (2009); Assistance mortelle (documentary, 2013); Murder
in Pacot (2014); I Am Not Your Negro (2016); The Young Karl Marx (2017)[26]
2 Ler entrevista no site Insider - http://www.insider.pt/2017/04/21/raoul-peck-vou-ao-passado-buscar-instrumentos-para-compreender-porque-trump-foi-eleito/
3 Idem;
4 K. Marx, “Prefácio”, Contribuição à crítica
da economia política. “Minha área de estudos era a jurisprudência, à
qual, todavia, eu não me dediquei senão de um modo acessório, como uma
disciplina subordinada relativamente à Filosofia e à História. Em 1842-1843, na
qualidade de redator da Rheinische Zeitung, encontrei-me, pela primeira vez, na
embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os
debates do Landtag renano sobre os delitos florestais e o parcelamento da
propriedade fundiária, a polêmica oficial que o sr. Von Schaper, então
governador da província renana, travou com a Gazeta Renana sobre as condições
de existência dos camponeses do Mosela, as discussões, por último, sobre o
livre-câmbio e o protecionismo proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu
começasse a me ocupar das questões econômicas”.
5 Em A.
Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels. “Sempre ouvi Marx dizer que foi pelo estudo da lei sobre o furto das
madeiras e da situação dos camponeses da Mosela que ele foi levado a passar da
política pura para o estudo das questões econômicas e, por isso mesmo, para o
socialismo”.
6 O Barão Ludwig, pai de Jenny, iniciou Marx na sua
compreensão social e política da realidade que o envolvia. Jenny era muito
culta e detentora de muita verve! Marx a conheceu em 1836 quando ele tinha 18
anos. Foi companheira de Marx por 38 anos, sem jamais ter sido a “sombra” do
marido, uma vez que era respeitada e admirada nos meios revolucionários da
época. Ela traduzia os textos de Marx, do alemão para o francês, organizava
seus escritos. O livro da jornalista Françoise Giroud, “Jenny Marx – ou, a
mulher do diabo”, criou o falso mito de que Jenny seria “vítima de Marx” e
desqualifica todo o legado dos dois companheiros de vida. Sem dúvida que a
ligação entre os dois se dava afetiva e politicamente. A vida de Jenny estava indissoluvelmente
ligada à de “Karlchen” (Marquinho)!
7 Mary Gabriel, Amor & Capital – A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução.
7 Mary Gabriel, Amor & Capital – A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução.