sábado, 13 de abril de 2019

PONTO DE PARTIDA - FILME “JANELA PARA A ALMA”: a mulher como precursora da psicanálise - Sabine Spielrein, o pseudo histerismo e o despertar anti-nerd de Jung!


N
este texto não pretendo elaborar uma resenha do filme “Janela para a alma”, pois há em abundância no ambiente da internet. Fá-lo-ei apenas a título de referência. O objetivo é analisar e problematizar os processos dinâmicos “desinclusão/inclusão/desinclusão sob uma perspectiva sócio-dialética e como a prática pedagógica pode lidar com as rupturas e inserções num contexto de establishment dado tal como é apresentado no filme. Assim, utilizando os aspectos pontuais que o filme elenca no que se refere a métodos clínicos de tratamento de pacientes acometidos por histeria tidos como loucos e violentos faço uma rápida síntese desde a Idade Média até os estertores do século XIX, veremos que são passíveis de inserção ao que se entende como “normalidade” dentro dos padrões socialmente aceitos. O tratamento e ulterior superação da jovem russa Sabina Spielrein são os pontos de partida no ensejo de um drama psicológico. À título de conclusão, o entendimento de como se dão os processos de inserção/inclusão da pessoa com deficiência nas instituições é dado sumamente pelo caráter político de um regime de governo, o qual molda a seu modo as resoluções de Estado.

O DOENTE MENTAL NA HISTÓRIA, A CONSTRUÇÃO DO PRECONCEITO NOS MARCOS DA MORALIDADE

As doenças mentais sempre implicaram formas de tratamento e tipos de convívios sociais na história da civilização ocidental. Na antiguidade clássica, por exemplo, esse tipo de doença era considerado como vontade e ação dos deuses da natureza e por ser oriunda de obra divina, os pacientes deveriam ser acolhidos ao menos com conforto (LOPES, 2001), ou então encarados como castigos impingidos pelos deuses e por isso tratados com magia, não raro com castigos físicos (ANNES, 2003). Houve casos que foram encarados resultantes de determinadas emoções como o amor e o ódio como fontes do comportamento humano (a filosofia clássica dos gregos), os quais foram retomados dois mil anos depois por Freud no Século XIX (idem). Destacam-se também os métodos científicos de então: a medicina recusava a pecha da intervenção divina punitiva de pecados, associando os malefícios da doença a distúrbios da Natureza humana, ou seja, partia do ponto de vista biológico e que as patologias daí derivavam, o que demonstrara ser bastante progressista para o pensamento antigo (idem).

Contudo, foi durante o período de dominação da Igreja católica, manifesta através da Inquisição medieval, é que os doentes mentais foram encarados como resultado de intervenção de demônios e, portanto, deveriam sofrer castigos tenebrosos como “método” de exorcismo. Geraram-se a partir daí o medo e o preconceito em relação às doenças da alma. Quase não havia fronteiras entre o “pecado” e a “loucura”, uma vez que ambos rompiam com os “mandamentos de Deus”, por isso deveriam ser defenestrados do convívio aos “tementes do Pai Todo Poderoso”. Nesta linha tênue entre loucura e pecado, ainda restava pequena chance de salvação para este último, caso se redimisse; agora, quanto ao louco, restava-lhe o suplício apenas, dispostos em depósitos de gente, com mínimo amparo humano, haja vista que o sofrimento para o catolicismo é uma condição para sua libertação. Tudo tende a piorar com a Reforma luterana (TASCHEN), quando o catolicismo de tipo estoico perde sua hegemonia no campo da teologia. Se antes havia certa recompensa divina por cuidar de um doente mental, a partir de Lutero quem apregoava que obras (caridade) não conduzem ao Paraíso, são considerados indesejáveis e inúteis, cujo destino foi a segregação pura e degradante, além de cruéis espancamentos, prisões e correntes, torturas seguidas de bárbaras execuções sumárias.

Estas pechas, “pecado” e “inutilidade” perduraram por muito tempo, em razão dos preconceitos impostos pela cultura ocidental cristã de claro conteúdo moral-funcional, não importando o grau da doença, pois até uma simples mania poderia ser encarada como “loucura” ou mal.

Sabine Spielrein, uma mulher
além de sua época
Não por acaso que logo no início do filme a personagem principal é tratada com extrema violência por sua família (pai) e logo transposta para o nível institucional (o manicômio). No início do século XIX a prática comum no “tratamento” da doença mental passava por submeter o paciente, “educar” para o convívio “acalmando-o” com banhos frios, chicotadas, sangrias (LOPES, 2001), cujas ideias permaneceriam até meados do século XX.
O caso de Sabina Spielrein, problematizado no filme, é emblemático de sua época, ao tomarmos como sinopse da Era Vitoriana – a Belle époque – onde o puritanismo e o apelo à moralidade foram a consequência da Revolução Industrial e do fortalecimento das relações burguesas e do capitalismo na sua versão imperialista (1839 acontece a Primeira Guerra do Ópio na China).

A família de classe média, neste contexto, era a fonte das repressões e exigências morais: pai ausente e autoritário, mulher submissa como expressão da sociedade patriarcal, repressora de desejos e impulsos; imperava o moralismo, a disciplina e os preconceitos relativos ao sexo, cujas certas práticas eram consideradas repugnantes. A moralidade extrema atingiu praticamente quase todo o Ocidente. A rainha Vitória chegou ao extremo de cobrir as pernas das mesas do palácio com imensas toalhas para evitar a conotação sexual das mesmas... Sexo e preguiça consideravam-se desvios e alvos de repulsa social, sendo que a castidade era meio e fim de vida. Não obstante, casos de histeria, principalmente feminina (alvo imediato do puritanismo misógino) apareciam de forma substanciosa neste período, sob a forma do desejo de morte como solução para sua dor. Sabina foi internada na Clínica Psiquiátrica de Burghölzli, em Zurique, no mês de Agosto de 1904, onde conheceu Jung.

Não por coincidência, no interregno dos séculos XIX e XX a psicanalise teve terreno vasto e fértil para se desenvolver e surgiu durante esse emaranhado nódulo social aparentemente inextrincável. Eis então, que sob o signo da repressão sexual, haverá de surgirem os novos métodos de tratamento das doenças mentais como a histeria, aos quais o Dr. Jung deu sua contribuição fundamental.

PRIMEIRO ACEITAR, LOGO A NECESSIDADE DE ATENÇÃO, CUIDADO E DOAÇÃO

Karl Jung, tomando os ensinamentos de Freud, propõe mudar a forma como se encarava os problemas mentais, trocando o método repressivo pelo “deixar falar”, modificando sobremaneira a relação médico são/paciente doente. Assim, a histeria, o desejo de morte passam a constar como um Universo próprio, que tem origem dada: o pai repressivo e a religião, no caso judaica, ambos inibidores de desejos. É, antes de tudo, uma neurose decorrente de relações opressivas num ambiente micro como a família. Jung, muito embora não tivesse em mente a ideia de inclusão conforme a compreendemos hoje, deu os primeiros passos nesse sentido ao determinar que o terapeuta deve ter um senso acurado de preocupação com o paciente (o objeto) como uma das trilhas que podem conduzir à cura.

O filme, evidentemente junguiano, trabalhou com o conceito de símbolo, o aspecto dialógico da consciência com o símbolo. No título, a tradução para o português está completamente fora de contexto, o que avilta à primeira vista a extensa obra do eminente psicanalista, já que em italiano o título versa por algo como prender, doar - “Prendimi l'anima” – como bem é representado no filme quando Jung entrega um seixo a Sabina, afirmando-lhe ser a sua alma como símbolo de doação para que ela a protegesse, se tornasse sua guardiã como símbolo de confiança! Em inglês, segue o mesmo intuito, representa a mesma conotação semântica: “The Soul Keeper”, guardiã da minha alma! Eis o ponto fulcral metodológico do filme: o aceitar e cuidar (NR: e amar como desvio ético de método e/ou parte integrante do processo!).

Não só ao médico cabe encontrar a cura, mas o paciente também exerce influencia sobre com quem o trata. Um entendimento de Sabina leva a que Jung modifique sua compreensão acerca do método psicanalítico: “Quando eu morrer quero que o doutor Jung receba minha cabeça, somente ele vai abri-la e disseca-la. Quero que meu corpo seja cremado e as cinzas espalhadas sobre um carvalho com os dizeres: eu também era um ser humano” (Jornada da Alma). Sentiu-se profundamente tocado com essa imensa sensibilidade de uma pessoa considerada “louca” pelas instituições ligadas ao establishment político. A aproximação humana com o paciente foi tomada como uma forma de melhor compreendê-lo, entender seu universo e a intensidade de suas emoções mais complexas.

Evidente que o método teve acertos e erros, tanto é verdade que Jung – também portador de certo nível de transtorno mental, síndrome de pânico na juventude, bipolaridade, sentimentos de opressão pela personalidade de Freud- desconhecia os limites da aproximação com o paciente acometido por doença mental, tanto que amiúde envolvia-se emocionalmente com mulheres em tratamento. Ele mesmo passou a considerar haver uma tênue fronteira entre o amor e a psicose, haja vista que revela a intensidade de uma derivação de “loucura”. Posteriormente, em cima das novas postulações que desenvolvia, rompeu com os princípios (sexuais) freudianos. Apesar dos percalços de seus envolvimentos, consegue êxito no tratamento de Sabina e por ela foi essencialmente influenciado ao ensinar-lhe o que é a paixão, o amor (primeiramente carnal) e a intensidade do que se faz, a sua reciprocidade, a troca. Houve, na realidade um embate de Sabina com a personalidade “certinha” de Jung, intensamente condicionada pelo vitorianismo de então. Ou seja, Jung lhe ensinou a necessidade de se cuidar da pessoa; Sabina mostrou-lhe a premência do Amor (não carnal/carnal) humanitário na psicanálise. Não só Jung, mas Freud modificou suas ideias acerca do histerismo através dos profícuos artigos científicos elaborados por Sabina, dos instintos de vida e morte compartilhados com seu mais fiel discípulo e “filho” (tratamento afetivo detestado por Jung!). Cabe mencionar, Freud, em suas insipientes formulações estava ainda impregnado por certo conteúdo misógino, por exemplo, achava que havia menor capacidade de sublimação das mulheres. A vida demonstrou quão errado estava Freud: “...transformação sublimatória do amor a Jung na criação de seu próprio trabalho intelectual, bem como o desejo de deslocamento do amor por Jung para outro homem, ao mesmo tempo em que a relação entre os dois sofria picos de encontro e intenso amor erótico, pelo menos até 1910” (CROMBERG, 2012).

Criança da Era Vitoriana:
um "problema" sem solução...
Até poucos anos a obra de Sabina Spielrein estava no limbo do desconhecimento, seus artigos envoltos pela poeira dos tempos. Sabina, ao romper com o espírito vitoriano, não pode ser considerada apenas como “histérica amante” de Jung; em 1912 estava a frente de Freud ao formular o conceito de pulsão de morte/destruição a partir da análise profunda da esquizofrenia e da neurose em seu célebre artigo “A destruição como causa do devir”. Dez anos depois publicou dezenas de obras sobre psicologia infantil. Portanto, é preciso resgatá-la como uma estudiosa fundadora do método psicanalítico, uma mulher repleta de desejos não exclusivamente de cunho sexual, mas os de liberdade e de inclusão de pessoas diferentes como ela o fora. Nesse sentido, foi a primeira estudiosa a criar uma escola infantil com bases na psicologia, a chamada “creche branca” em plena Rússia revolucionária de Lenin e Trotsky – este amicíssimo de Alfred Adler (psicólogo trabalhava com os aspectos sociais da consciência, o “plano de vida” – rompeu “a tapas” com Freud). Acreditando no sonho da Revolução proferia o sentimento de liberdade para as crianças, a psicoterapia voltada para os processos de inclusão social, o tratamento de crianças especiais e pelo amadurecimento crítico e analítico das crianças em geral. Foi a pioneira na história dos processos inclusivos, para os quais dedicou seu amor e paixão! O calor da Revolução expandiu a sua paixão e estimulada com fervor por Trotsky, grande admirador das teorias psicanalíticas e da psicogênese de Piaget (Sabina colaborou muito com o “pai da psicogênese”). Criou na Rússia Soviética o Lar Experimental para Crianças ou Casa Branca e assumiu a chefia do instituto de pedologia (desenvolvimento da infância). As crianças compunham o primeiro plano dentro das metas da revolução, Sabina estava totalmente engajada nesse projeto fascinante, muito bem descrito pela historiadora Wendy Goldman no livro (Mulher, Estado e Revolução - Boitempo Editorial).

A MORTE COMO SÍMBOLO SOPREPUJADA PELA MORTE REAL NO CONTEXTO DA HISTERIA SOCIAL CONTRARREVOLUCIONÁRIA

Entretanto, Sabina viria a sofrer outro tipo de histeria, agora a coletiva: com a morte de Lenin, abre-se um período de terror na União Soviética, sob o comando de Stalin. Muitos revolucionários sinceros são assassinados. Em 1936, no auge dos processos de Moscou, Stalin proíbe a psicanálise em toda a URSS, período durante o qual o marido de Sabina fora torturado e assassinado. Sabina era acusada de perverter sexualmente as crianças com sua “concepção burguesa”. Todo seu longo trabalho em defesa da inclusão fora destruída pela burocracia estúpida de Stalin e sua camarilha.

Stalin via educadores soviéticos como "burgueses",
foram duramente perseguidos e mortos...
O desejo de morte pré-revolução que acometia Sabina vinha à tona como produto de uma sociedade extremamente repressora e moralista-burguesa em ascensão. Doravante, superado esse trauma, graças a proposta inclusiva de Jung, ao trata-la com amor (até mais do que deveria!), não só se recuperou como passa a elaborar virtuoso arcabouço teórico no campo da psicopedagogia e sua intensa ligação com seus sonhos de liberdade alimentados pelos ideais da revolução. A morte como símbolo estava vencida! Contudo, ela voltaria de forma cruel e ímpia. Com a morte de Lenin, em 1924, inicia-se o período contrarrevolucionário dirigido por Stalin, quem instaurou o terror, os pogroms, o retrocesso político e cultural, cujo ápice fora o fim da liberdade de pensamento. Para a camarilha de Stalin, o livre pensar era herança capitalista não compatível com o socialismo. Assim, creditava que a psicoterapia de Sabina incentivava a “perversão sexual” das crianças e que outros pensadores russos como Vigotsky difundiam o pensamento burguês. Foram todos banidos, seus livros e artigos queimados em praça pública. A sociedade psicanalítica foi extinta em 1929 pela camarilha stalinista, mesmo ano que Leon Trotsky fora expulso da URSS e Sabina proibida de sair da Rússia. O marido de Sabina, Pavel Scheftel, ao lado de seus três irmãos, Isaak, Emil e Jeanfora, todos assassinados a mando de Stalin. O círculo da morte completar-se-ia quando Sabina, aos 56 anos, fora executada junto com suas duas filhas por grupos paramilitares que ocuparam o território soviético (SS nazistas) em 1942.

Assim, de “louca” em seu passado, através de um complexo processo de inclusão, acaba por deixar sua marca indelével na História, voltada para a colaboração com o bem-estar da sociedade, traçou seu caminhos mais avançados para o século vindouro! Ainda bem que sua obra fora desempoeirada em meados dos anos 90, a grande mestre de (vida) para Jung e Freud que despertou o mundo para a necessidade de pensarmos a INCLUSÃO no seio da sociedade e a consequente quebra dos preconceitos e dos tratamentos manicomiais mais agressivos e invasivos (os quais, no Brasil, o bolsonarismo pretende reviver)! Num ambiente profundamente machista nos estertores do século XIX e início do XX, uma mulher, aceita no “círculo de Viena” (sociedade de psicanálise), quebrou paradigmas e criou novas e avançadas perspectivas sociais, culturais e educacionais para a Humanidade.



Referências bibliográficas:


ANNES, Sérgio Paulo. “Psiquiatria para estudantes de medicina”. 03/07/2003 http://www.annes.com.br/escritos/artigo09.htm acessado em 15 de abril/2018.

CROMBERG, Renata Udler. A autoria de Sabina Spielrein. Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo jun. 2012.

FILME, Jornada da Alma. https://youtu.be/HlL5WiKeccE?t=28m4s acesso em 17 de abril de 2018. A versão em italiano é mais fiel: https://www.youtube.com/watch?v=psUnwBGU6I0; e ainda a versão original em inglês: https://www.youtube.com/watch?v=TwnY5Z8rxpA

LOPES, Maria Helena Itaqui. Pesquisa em Hospitais Psiquiátricos. 25/08/2001. https://www.ufrgs.br/bioetica/psiqpes.htm acesso em 15 de abril/2018.

TASCHEN. Los secretos de las obras de arte. http://virusdaarte.net/a-loucura-na-idade-media/ acessado em 15 de abril de 2018.