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este texto não pretendo
elaborar uma resenha do filme “Janela para a alma”, pois há em abundância no
ambiente da internet. Fá-lo-ei apenas a título de referência. O objetivo é
analisar e problematizar os processos dinâmicos
“desinclusão/inclusão/desinclusão sob uma perspectiva sócio-dialética e como a
prática pedagógica pode lidar com as rupturas e inserções num contexto de establishment
dado tal como é apresentado no filme. Assim, utilizando os aspectos pontuais
que o filme elenca no que se refere a métodos clínicos de tratamento de
pacientes acometidos por histeria tidos como loucos e violentos faço uma rápida
síntese desde a Idade Média até os estertores do século XIX, veremos que são
passíveis de inserção ao que se entende como “normalidade” dentro dos padrões
socialmente aceitos. O tratamento e ulterior superação da jovem russa Sabina
Spielrein são os pontos de partida no ensejo de um drama psicológico. À título
de conclusão, o entendimento de como se dão os processos de inserção/inclusão
da pessoa com deficiência nas instituições é dado sumamente pelo caráter
político de um regime de governo, o qual molda a seu modo as resoluções de
Estado.
O DOENTE MENTAL NA
HISTÓRIA, A CONSTRUÇÃO DO PRECONCEITO NOS MARCOS DA MORALIDADE
As doenças mentais
sempre implicaram formas de tratamento e tipos de convívios sociais na história
da civilização ocidental. Na antiguidade clássica, por exemplo, esse tipo de
doença era considerado como vontade e ação dos deuses da natureza e por ser
oriunda de obra divina, os pacientes deveriam ser acolhidos ao menos com
conforto (LOPES, 2001), ou então encarados como castigos impingidos pelos
deuses e por isso tratados com magia, não raro com castigos físicos (ANNES,
2003). Houve casos que foram encarados resultantes de determinadas emoções como
o amor e o ódio como fontes do comportamento humano (a filosofia clássica dos
gregos), os quais foram retomados dois mil anos depois por Freud no Século XIX
(idem). Destacam-se também os métodos científicos de então: a medicina recusava
a pecha da intervenção divina punitiva de pecados, associando os malefícios da
doença a distúrbios da Natureza humana, ou seja, partia do ponto de vista
biológico e que as patologias daí derivavam, o que demonstrara ser bastante
progressista para o pensamento antigo (idem).
Contudo,
foi durante o período de dominação da Igreja católica, manifesta através da Inquisição
medieval, é que os doentes mentais foram encarados como resultado de
intervenção de demônios e, portanto, deveriam sofrer castigos tenebrosos como
“método” de exorcismo. Geraram-se a partir daí o medo e o preconceito em
relação às doenças da alma.
Quase não havia fronteiras entre o “pecado” e a “loucura”, uma vez que ambos
rompiam com os “mandamentos de Deus”, por isso deveriam ser defenestrados do
convívio aos “tementes do Pai Todo Poderoso”. Nesta linha tênue entre loucura e
pecado, ainda restava pequena chance de salvação para este último, caso se
redimisse; agora, quanto ao louco, restava-lhe o suplício apenas, dispostos em
depósitos de gente, com mínimo amparo humano, haja vista que o sofrimento para
o catolicismo é uma condição para sua libertação. Tudo tende a piorar com a
Reforma luterana (TASCHEN), quando o catolicismo de tipo estoico perde sua
hegemonia no campo da teologia. Se antes havia certa recompensa divina por
cuidar de um doente mental, a partir de Lutero quem apregoava que obras
(caridade) não conduzem ao Paraíso, são considerados indesejáveis e inúteis,
cujo destino foi a segregação pura e degradante, além de cruéis espancamentos, prisões
e correntes, torturas seguidas de bárbaras execuções sumárias.
Estas
pechas, “pecado” e “inutilidade” perduraram por muito tempo, em razão dos
preconceitos impostos pela cultura ocidental cristã de claro conteúdo moral-funcional,
não importando o grau da doença, pois até uma simples mania poderia ser
encarada como “loucura” ou mal.
Sabine Spielrein, uma mulher além de sua época |
Não por acaso que logo
no início do filme a personagem principal é tratada com extrema violência por
sua família (pai) e logo transposta para o nível institucional (o manicômio).
No início do século XIX a prática comum no “tratamento” da doença mental
passava por submeter o paciente, “educar” para o convívio “acalmando-o” com
banhos frios, chicotadas, sangrias (LOPES, 2001), cujas ideias permaneceriam
até meados do século XX.
O caso de Sabina Spielrein,
problematizado no filme, é emblemático de sua época, ao tomarmos como sinopse
da Era Vitoriana – a Belle époque – onde o puritanismo e o apelo à moralidade
foram a consequência da Revolução Industrial e do fortalecimento das relações
burguesas e do capitalismo na sua versão imperialista (1839 acontece a Primeira
Guerra do Ópio na China).
A família de classe
média, neste contexto, era a fonte das repressões e exigências morais: pai
ausente e autoritário, mulher submissa como expressão da sociedade patriarcal,
repressora de desejos e impulsos; imperava o moralismo, a disciplina e os
preconceitos relativos ao sexo, cujas certas práticas eram consideradas
repugnantes. A moralidade extrema atingiu praticamente quase todo o Ocidente. A
rainha Vitória chegou ao extremo de cobrir as pernas das mesas do palácio com
imensas toalhas para evitar a conotação sexual das mesmas... Sexo e preguiça
consideravam-se desvios e alvos de repulsa social, sendo que a castidade era
meio e fim de vida. Não obstante, casos de histeria, principalmente feminina
(alvo imediato do puritanismo misógino) apareciam de forma substanciosa neste
período, sob a forma do desejo de morte como solução para sua dor. Sabina foi
internada na Clínica Psiquiátrica de Burghölzli, em Zurique, no mês de Agosto
de 1904, onde conheceu Jung.
Não por coincidência, no
interregno dos séculos XIX e XX a psicanalise teve terreno vasto e fértil para
se desenvolver e surgiu durante esse emaranhado nódulo social aparentemente
inextrincável. Eis então, que sob o signo da repressão sexual, haverá de
surgirem os novos métodos de tratamento das doenças mentais como a histeria,
aos quais o Dr. Jung deu sua contribuição fundamental.
PRIMEIRO ACEITAR, LOGO A
NECESSIDADE DE ATENÇÃO, CUIDADO E DOAÇÃO
Karl Jung, tomando os
ensinamentos de Freud, propõe mudar a forma como se encarava os problemas
mentais, trocando o método repressivo pelo “deixar falar”, modificando
sobremaneira a relação médico são/paciente doente. Assim, a histeria, o desejo
de morte passam a constar como um Universo próprio, que tem origem dada: o pai
repressivo e a religião, no caso judaica, ambos inibidores de desejos. É, antes
de tudo, uma neurose decorrente de relações opressivas num ambiente micro como
a família. Jung, muito embora não
tivesse em mente a ideia de inclusão conforme a compreendemos hoje, deu os
primeiros passos nesse sentido ao determinar que o terapeuta deve ter um senso
acurado de preocupação com o paciente (o objeto) como uma das trilhas que podem
conduzir à cura.
O filme, evidentemente
junguiano, trabalhou com o conceito de símbolo, o aspecto dialógico da
consciência com o símbolo. No título, a tradução para o português está
completamente fora de contexto, o que avilta à primeira vista a extensa obra do
eminente psicanalista, já que em italiano o título versa por algo como prender,
doar - “Prendimi l'anima” – como bem é representado no filme quando Jung
entrega um seixo a Sabina, afirmando-lhe ser a sua alma como símbolo de doação
para que ela a protegesse, se tornasse sua guardiã como símbolo de confiança!
Em inglês, segue o mesmo intuito, representa a mesma conotação semântica: “The
Soul Keeper”, guardiã da minha alma! Eis o ponto fulcral metodológico do filme:
o aceitar e cuidar (NR: e amar como
desvio ético de método e/ou parte integrante do processo!).
Não só ao médico cabe
encontrar a cura, mas o paciente também exerce influencia sobre com quem o
trata. Um entendimento de Sabina leva a que Jung modifique sua compreensão
acerca do método psicanalítico: “Quando
eu morrer quero que o doutor Jung receba minha cabeça, somente ele vai abri-la
e disseca-la. Quero que meu corpo seja cremado e as cinzas espalhadas sobre um
carvalho com os dizeres: eu também era um ser humano” (Jornada da Alma). Sentiu-se
profundamente tocado com essa imensa sensibilidade de uma pessoa considerada
“louca” pelas instituições ligadas ao establishment político. A aproximação
humana com o paciente foi tomada como uma forma de melhor compreendê-lo,
entender seu universo e a intensidade de suas emoções mais complexas.
Evidente que o método
teve acertos e erros, tanto é verdade que Jung – também portador de certo nível
de transtorno mental, síndrome de pânico na juventude, bipolaridade, sentimentos
de opressão pela personalidade de Freud- desconhecia os limites da aproximação
com o paciente acometido por doença mental, tanto que amiúde envolvia-se
emocionalmente com mulheres em tratamento. Ele mesmo passou a considerar haver
uma tênue fronteira entre o amor e a psicose, haja vista que revela a
intensidade de uma derivação de “loucura”. Posteriormente, em cima das novas
postulações que desenvolvia, rompeu com os princípios (sexuais) freudianos.
Apesar dos percalços de seus envolvimentos, consegue êxito no tratamento de
Sabina e por ela foi essencialmente influenciado ao ensinar-lhe o que é a
paixão, o amor (primeiramente carnal) e a intensidade do que se faz, a sua
reciprocidade, a troca. Houve, na realidade um embate de Sabina com a
personalidade “certinha” de Jung, intensamente condicionada pelo vitorianismo
de então. Ou seja, Jung lhe ensinou a
necessidade de se cuidar da pessoa; Sabina mostrou-lhe a premência do Amor (não
carnal/carnal) humanitário na psicanálise. Não só Jung, mas Freud modificou suas
ideias acerca do histerismo através dos profícuos artigos científicos elaborados
por Sabina, dos instintos de vida e morte compartilhados com seu mais fiel
discípulo e “filho” (tratamento afetivo detestado por Jung!). Cabe mencionar, Freud, em suas
insipientes formulações estava ainda impregnado por certo conteúdo misógino,
por exemplo, achava que havia menor capacidade de sublimação das mulheres. A
vida demonstrou quão errado estava Freud: “...transformação sublimatória do
amor a Jung na criação de seu próprio trabalho intelectual, bem como o desejo
de deslocamento do amor por Jung para outro homem, ao mesmo tempo em que a
relação entre os dois sofria picos de encontro e intenso amor erótico, pelo
menos até 1910” (CROMBERG, 2012).
Criança da Era Vitoriana: um "problema" sem solução... |
Até poucos anos a obra
de Sabina Spielrein estava no limbo do desconhecimento, seus artigos envoltos
pela poeira dos tempos. Sabina, ao romper com o espírito vitoriano, não pode
ser considerada apenas como “histérica amante” de Jung; em 1912 estava a frente
de Freud ao formular o conceito de pulsão de morte/destruição a partir da
análise profunda da esquizofrenia e da neurose em seu célebre artigo “A
destruição como causa do devir”. Dez anos depois publicou dezenas de obras
sobre psicologia infantil. Portanto, é preciso resgatá-la como uma estudiosa fundadora do método
psicanalítico, uma mulher repleta de desejos não exclusivamente de cunho
sexual, mas os de liberdade e de inclusão de pessoas diferentes como ela o fora.
Nesse sentido, foi a primeira estudiosa a criar uma escola infantil com bases
na psicologia, a chamada “creche branca” em plena Rússia revolucionária de
Lenin e Trotsky – este amicíssimo de Alfred Adler (psicólogo trabalhava com
os aspectos sociais da consciência, o “plano de vida” – rompeu “a tapas” com
Freud). Acreditando no sonho da
Revolução proferia o sentimento de liberdade para as crianças, a psicoterapia
voltada para os processos de inclusão social, o tratamento de crianças
especiais e pelo amadurecimento crítico e analítico das crianças em geral. Foi
a pioneira na história dos processos inclusivos, para os quais dedicou seu amor
e paixão! O calor da Revolução expandiu a sua paixão e estimulada com fervor
por Trotsky, grande admirador das teorias psicanalíticas e da psicogênese de
Piaget (Sabina colaborou muito com o “pai da psicogênese”). Criou na Rússia
Soviética o Lar Experimental para Crianças ou Casa Branca e assumiu a chefia do
instituto de pedologia (desenvolvimento da infância). As crianças compunham o
primeiro plano dentro das metas da revolução, Sabina estava totalmente engajada
nesse projeto fascinante, muito bem descrito pela historiadora Wendy Goldman no
livro (Mulher, Estado e Revolução - Boitempo Editorial).
A MORTE COMO SÍMBOLO
SOPREPUJADA PELA MORTE REAL NO CONTEXTO DA HISTERIA SOCIAL
CONTRARREVOLUCIONÁRIA
Entretanto, Sabina viria
a sofrer outro tipo de histeria, agora a coletiva: com a morte de Lenin,
abre-se um período de terror na União Soviética, sob o comando de Stalin.
Muitos revolucionários sinceros são assassinados. Em 1936, no auge dos
processos de Moscou, Stalin proíbe a psicanálise em toda a URSS, período
durante o qual o marido de Sabina fora torturado e assassinado. Sabina era
acusada de perverter sexualmente as crianças com sua “concepção burguesa”. Todo
seu longo trabalho em defesa da inclusão fora destruída pela burocracia
estúpida de Stalin e sua camarilha.
Stalin via educadores soviéticos como "burgueses", foram duramente perseguidos e mortos... |
O desejo de morte
pré-revolução que acometia Sabina vinha à tona como produto de uma sociedade
extremamente repressora e moralista-burguesa em ascensão. Doravante, superado
esse trauma, graças a proposta inclusiva de Jung, ao trata-la com amor (até
mais do que deveria!), não só se recuperou como passa a elaborar virtuoso
arcabouço teórico no campo da psicopedagogia e sua intensa ligação com seus
sonhos de liberdade alimentados pelos ideais da revolução. A morte como símbolo
estava vencida! Contudo, ela voltaria de forma cruel e ímpia. Com a morte de
Lenin, em 1924, inicia-se o período contrarrevolucionário dirigido por Stalin,
quem instaurou o terror, os pogroms,
o retrocesso político e cultural, cujo ápice fora o fim da liberdade de
pensamento. Para a camarilha de Stalin, o livre pensar era herança capitalista
não compatível com o socialismo. Assim, creditava que a psicoterapia de Sabina
incentivava a “perversão sexual” das crianças e que outros pensadores russos
como Vigotsky difundiam o pensamento burguês. Foram todos banidos, seus livros
e artigos queimados em praça pública. A sociedade psicanalítica foi extinta em
1929 pela camarilha stalinista, mesmo ano que Leon Trotsky fora expulso da URSS
e Sabina proibida de sair da Rússia. O marido de Sabina, Pavel Scheftel, ao
lado de seus três irmãos, Isaak, Emil e Jeanfora, todos assassinados a mando de
Stalin. O círculo da morte completar-se-ia quando Sabina, aos 56 anos, fora
executada junto com suas duas filhas por grupos paramilitares que ocuparam o
território soviético (SS nazistas) em 1942.
Assim, de “louca” em seu
passado, através de um complexo processo de inclusão, acaba por deixar sua
marca indelével na História, voltada para a colaboração com o bem-estar da
sociedade, traçou seu caminhos mais avançados para o século vindouro! Ainda
bem que sua obra fora desempoeirada em meados dos anos 90, a grande mestre de (vida)
para Jung e Freud que despertou o mundo para a necessidade de pensarmos a
INCLUSÃO no seio da sociedade e a consequente quebra dos preconceitos e dos
tratamentos manicomiais mais agressivos e invasivos (os quais, no Brasil, o
bolsonarismo pretende reviver)! Num ambiente profundamente machista nos estertores
do século XIX e início do XX, uma mulher, aceita no “círculo de Viena”
(sociedade de psicanálise), quebrou paradigmas e criou novas e avançadas perspectivas
sociais, culturais e educacionais para a Humanidade.
Referências
bibliográficas:
ANNES, Sérgio Paulo.
“Psiquiatria para estudantes de medicina”. 03/07/2003 http://www.annes.com.br/escritos/artigo09.htm
acessado em 15 de abril/2018.
CROMBERG, Renata Udler.
A autoria de Sabina Spielrein. Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae. São Paulo jun. 2012.
FILME, Jornada da Alma. https://youtu.be/HlL5WiKeccE?t=28m4s
acesso em 17 de abril de 2018. A versão em italiano é mais fiel: https://www.youtube.com/watch?v=psUnwBGU6I0;
e ainda a versão original em inglês: https://www.youtube.com/watch?v=TwnY5Z8rxpA
LOPES, Maria Helena
Itaqui. Pesquisa em Hospitais Psiquiátricos. 25/08/2001. https://www.ufrgs.br/bioetica/psiqpes.htm
acesso em 15 de abril/2018.
TASCHEN. Los secretos de
las obras de arte. http://virusdaarte.net/a-loucura-na-idade-media/
acessado em 15 de abril de 2018.