“A acumulação original desempenha na economia política aproximadamente
o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão deu uma dentada na maçã,
e deste modo o pecado desceu sobre o género humano. A origem daquele é
explicada ao ser contada como anedota do passado. Num tempo remoto havia, de um
lado, uma elite diligente, inteligente, e sobretudo frugal, e do outro uma
escumalha preguiçosa, que dissipava tudo o que tinha e mais” (K. Marx, O
Capital - A Chamada Acumulação Original)
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assados três longos e terríveis séculos dos suplícios da
escravidão, a 8 de maio de 1888 o ministro da agricultura conselheiro Rodrigo
Augusto da Silva – membro do Partido Conservador - apresenta seu projeto à
Câmara dos Deputados, o qual preconizava o fim do trabalho escravo no Brasil. 83
deputados declararam-se favoráveis; 9 foram contra. Aprovado logo foi remetido
para o Senado, “onde foi recebido com grande alegria” (Anais do Senado), votado
e aprovado no dia 13 e encaminhado para a regente “princesa” Isabel que na
mesma tarde assinou a “Lei Áurea” (Lei Imperial n.º 3.353). Porém, muito
distante desta visão idílica e ordeira, a realidade foi tremendamente adversa: “Os
ex-escravos foram abandonados à sua própria sorte... Se a lei lhes garantia o
status jurídico de homens livres, ela não lhes fornecia os meios para tornar
sua liberdade efetiva... A Lei Áurea abolia a escravidão mas não seu legado.
Trezentos anos de opressão não se eliminam com uma penada” (A abolição, Emília
Viotti da Costa). Assim deve ser compreendido o processo da abolição da
escravatura no Brasil, ou seja, a lei ainda que de modo deformado, indicava um
acirramento da luta de classes durante o período colonial (capitalista). O
caráter de classe da “princesa” e seu pai (D. Pedro II) é inquestionável.
Agora, de forma alguma pode ser caracterizada como falsa a abolição, pois adotar
tal assertiva é corroborar com a ocultação das resistências e lutas heroicas do
povo negro que não foram poucas (fugas, justiçamentos de senhores e feitores,
rebeliões, quilombolas...), fazendo coro com um “novo” tipo de história segundo
o qual a resistência do trabalhador escravizado é negada “em meio a uma
sociedade harmônica, que quando o cativo atinge sua alforria sente falta da
proteção de seu senhor” (Katia Mattoso) enaltecendo um mundo de sonhos e de
“colaboração mútua”.
O 13 de maio não caiu do céu, ou fruto de um ato de
humanidade ou de princípio moral da princesa Isabel e do Senado ou adveio da Inglaterra
capitalista com esses mesmos preceitos. Além de ser a expressão das novas tendências econômicas, ele foi
resultado de infindáveis resistências e confrontos contra os senhores
escravistas.
"princesa" Isabel e seu pai, D. Pedro II são obrigados a assinar a Lei Áurea que pôs fim à escravidão no Brasil |
Como bem afirma Mario Maestri, ao replicar o neofascismo de
Kátia Mattoso: “Resistência expressa através de múltiplas formas singulares de
oposição, de vasta e ininterrupta ocorrência - apropriação de bens, sabotagem,
suicídio, fuga, revolta, insurreição, quilombo e, sobretudo, o ‘desamor’ ao
trabalho” (Como era gostoso ser escravo
no Brasil - A Apologia da Servidão Voluntária de Kátia de Queirós Mattoso).
Isto porque estavam submetidos a um rígido controle social e repressão. “O
escravo era o esqueleto que sustentava os músculos e a carne da sociedade
escravista, porque era o produtor da riqueza geral, através de seu trabalho”
(Clóvis Moura, Rebeliões da Senzala).
Com bases nestas relações de produções primordiais eclodem o
que podemos considerar as primeiras greves de trabalhadores no Brasil, sob as
formas passivas e ativas. O suicídio, a depressão (banzo), o infanticídio,
fugas individuais/coletivas, organização de quilombolas distantes das cidades, a
música, os cultos das divindades, são as manifestações de tipo passiva; as
ativas tinham sua expressão nas revoltas urbanas, as guerrilhas nas matas e
estradas, solidariedade em movimentos não-escravos, resistência armada às
invasões dos quilombos, violência coletiva (justiçamentos) contra senhores ou
feitores.
Os quilombos não constituíam apenas formas de enfrentamentos,
mas estavam embasados em propostas, ainda que primitivamente, de uma nova
sociedade onde não havia divisão de classes, nem exploração, tampouco senhorios.
Todos eram bem-vindos à estrutura política-produtiva, brancos marginalizados,
índios... Este era o grande “perigo” para o regime escravista! Precisava ser
destruído, papel para o qual os Bandeirantes paulistas foram imbuídos. Nestes duros
embates de classes, milhares de lutadores deram a sua vida na busca de uma
sociedade mais humana e sem exploração, fato que hoje, após 128 anos da
assinatura da “Lei Áurea”, é suficiente para determinar a importância do dia 13
de Maio na luta dos explorados sem reverenciar acriticamente o “ato” da
princesa Isabel e seus consortes “imperiais” brasileiros.
População ocupa paço municipal do Rio de Janeiro no dia 14 de maio para receber o anúncio do fim do trabalho escravo |
No entanto, como não poderia haver uma consciência de classe
dos escravos em meio a uma coletividade – os explorados começariam a se
organizar como classe para si apenas nas primeiras décadas do século XX. Marx
já advertia que nesta situação o capitalismo revoluciona-se a si mesmo através
do desenvolvimento da livre concorrência na Europa abrindo novas necessidades
mercantis e industriais. Com o advento do capitalismo industrial a Inglaterra
passa a exigir novas relações de produção. Desde o processo de “independência”
do Brasil essa regra já começara a valer formulando leis contra a escravidão.
Num processo evolutivo vieram a lei Sexagenária, a do Ventre Livre e finalmente
a abolição. Vale lembrar, sem hipocrisia, que os maiores e cruéis traficantes
de escravos foram os... ingleses! Estima-se que cerca de 6 milhões de escravos
foram negociados no porto de Liverpool, cidade conhecida como “capital do
comércio transatlântico”, tratado como “business as usual” ou negócio como
outro qualquer. Depois de ter enchido as burras a Grã-Bretanha, ao lado da
França, toma a dianteira no embate contra o tráfico negreiro... em busca de um
mercado consumidor para seus produtos derivados da revolução industrial,
preceitos disseminados pela Lei Bill Aberdeen (Slave Trade Suppression Act), de 1845, fomentando movimentos ideológicos
abolicionistas em seu quintal e nas colônias. Cinco anos depois, é aprovada a
Lei Eusébio de Queiróz que proibia o tráfico de escravos no Brasil [http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=bill-aberdeen-integra-londres-1845].
O capitalismo avançava gradualmente dissolvendo obstáculos postos pelas
reacionárias monarquias feudais e sua mentalidade medieval.
O CAPITALISMO LUBRIFICOU SUAS MÁQUINAS COM O SANGUE E SUOR DOS
ESCRAVOS. A BURGUESIA COMO “NOVO” SENHOR DOS OPRIMIDOS
A capitalista Inglaterra foi o centro do comércio negreiro no Atlântico |
O pecado original do capitalismo acometeu-se com a mordida
da maçã do escravismo colonial. A moderna escravidão surgiu das necessidades de
mão de obra abundante a ser deslocada para as Américas. As tribos africanas,
consideradas inferiores, “bárbaras e primitivas” por não serem “católicas”
foram as escolhidas para alimentar todo um sistema mercantil inaugurado pela
nascente burguesia. O caráter pagão dos africanos foi a justificativa
ideológica para o uso do negro cativo para expandir as terras das colônias. O
conteúdo racista em relação ao “ser inferior” foi a consequência lógica deste
sistema. O racismo ideológico e com bases econômicas surgiu abraçado com o
capitalismo desde a sua origem, sedimentado pelo pensamento hegemônico à época,
a Igreja católica a fim de justificar a opressão econômica e o acúmulo de
riquezas com trabalho alheio.
A igreja começou a apoiar abertamente a escravidão do negro
africano, através da publicação da bula Romanus
Pontifex [http://docslide.com.br/documents/1455-01-08-bula-romanus-pontifex.html],
em 1455 do papa Nicolau V. Assim, autorizava com plenos poderes a captura dos
negros pelos portugueses. Ali estava toda uma construção ideológica na qual o
negro não tinha alma, eram seres inferiores etc. Estavam, sobremaneira, dadas
as condições ideais para a expansão da escravidão e do tráfico negreiro e um
cabedal de preconceitos, desde antes da “descoberta” do Brasil. Ou seja, o
racismo não precede o capitalismo, é antes de tudo uma elaboração deste!!!
Zumbi e Dandara, luta e resistência armada em Palmares |
Contudo, não foi apenas com o desenvolvimento do capitalismo
que a abolição formal da escravatura aconteceu no Brasil, nem mesmo decorrente
de uma benevolência da classe dominante. Há pelo menos três séculos as lutas de
enfrentamentos com os senhores eram frequentes. A heroica luta de Zumbi e
Dandara em Palmares, as revoltas dos Jangadeiros no Ceará (primeiro estado
brasileiro a abolir a escravidão), a Cabanagem, a Balaiada do Negro Cosme que,
no Maranhão, gritava “o Balaio chegou, não tem mais nem sinhô”, a Sabinada, a
Revolta dos Malês tendo a frente Luiza Mahin que por pouco não tomou o poder em
Salvador, o empenho militante dos tipógrafos abolicionistas mais posteriormente
no Rio de Janeiro e São Paulo e tantas outras lutas. Não restam sombras de
dúvidas que tais enfrentamentos, por um lado, a custo de muito sangue conduziram
a importantes conquistas como a Lei Sexagenária, a Lei do Ventre Livre e, por
fim, a Lei Áurea.
O DIA 13 DE MAIO COMO FORMA DE DENÚNCIA DA OPRESSÃO À
POPULAÇÃO NEGRA. LUTAR CONTRA O RACISMO É BATER NO CAPITALISMO!
O escravismo moderno e a marginalização do povo negro |
De outro lado, face aos limites claros da lei que não previa
o destino dos escravos “libertos”. Havia a excludente “Lei de Terras” que
impedia a posse, por menor que seja, de terra dos ex-escravos, a qual
expulsara-os do campo e empurrou-os a viverem em quilombos muito pobres
(precursores das favelas modernas) ou nas periferias das grandes cidades, ao
passo que o Estado, em muitos casos, indenizara os grandes latifundiários com
grandes fortunas. O ex-escravo estava entregue a sua própria sorte, e até hoje
convive com o estigma da miséria em seu perverso ciclo da pobreza. Para piorar
a situação, o governo estimula a vinda dos imigrantes para trabalhar como
“assalariados” nas fazendas.
Na atual conjuntura política brasileira, com a deposição da
presidenta Dilma, num golpe urdido pela classe dominante que em nada evoluiu
desde a época colonial em seus preconceitos e boçalidade, cabe transformar este
dia 13 de Maio em uma data de denúncia acerca da situação de exploração e
marginalização da população negra e dos ataques a todos os trabalhadores que
estão por vir com o governo de bandidos que ascendeu ao Planalto. O mesmo
capitalismo que outrora aprisionou o povo negro na escravidão faz o mesmo com o
proletariado e, pior ainda, com os trabalhadores negros, amontoando-os em
favelas, cortiços, explorando como mão de obra barata na indústria e no campo
ou são escolhidos como alvos preferenciais das balas da polícia nos morros.