A "draisiana" criada há 200 anos |
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ada vez mais difundida nos hábitos urbanos nas grandes
metrópoles, a bicicleta está completando 200 anos de existência e sofisticação!
De simples brinquedo evoluiu para um dos veículos mais utilizados no mundo –
somente na China são mais de 500 milhões de bicicletas –, inclusive proporcionando
rupturas nos costumes e nas tendências políticas como a emancipação da mulher. Notícias
esparsas indicam que a bicicleta teria sido idealizada por Leonardo da Vinci esboçada
em seu Codex Atlanticus, mas
historiadores contestam a versão, afirmando ser falsa1. O tema é controverso. Entretanto, a bicicleta
deixa os esboços em papel para dar seus primeiros sinais de existência numa
época em que as fontes de energia estavam sendo questionadas e estudadas cuja
máquina a vapor começava a despontar no horizonte tecnológico da Revolução
Industrial no Século XVIII. Nasceram quase que simultaneamente enquanto
mentalidade e funcionalidade! Ou seja, vivia-se uma época de grande expansão
econômica e, consequentemente, da indústria que cria novas necessidades
materiais, o que redunda numa fé inabalável na realização da ciência e na
liberdade individual. A máquina viria
para libertar o trabalho do Homem, conceder-lhe mais tempo para o livre pensar
e o lazer, enfim melhorar as condições de vida. O progresso seria um
moto-contínuo perpétuo e inabalável da Humanidade. Claro, crença, nada
mais... Guerras e conflitos virão em nome da disputa de mercados.
O Barão Von Drais, inventor da bicicleta |
DO “CELERÍFERO” À “DRAISIANA”, AS DUAS RODAS QUE TRANSFORMARAM
O MUNDO!
Nesta época de profundas estratificações sociais – aumento
da riqueza mundial ao lado do empobrecimento da maioria da população – e
expansão econômica em nível mundial está em correspondência com a mentalidade
desta fase de pleno otimismo. Outrossim, vivia-se uma crise em decorrência de
desastres climáticos (erupção do vulcão na Indonésia), que devastaram a
agricultura, provocaram a redução dos animais de tração – cavalos foram
devorados... provocando a escassez do mesmo.
Eis que um alemão, em 1817, o engenheiro agrônomo, Barão
Karl von Drais desenvolve um projeto de bicicleta, cujo objetivo era andar
pelos campos sem a utilização de cavalos ou carroças, aperfeiçoou o velho aparato
de duas rodas chamado “celerífero”, um brinquedo criado por Sivrac2 em 1790 com duas rodas retas sem direção. O
barão pode ser considerado o pioneiro moderno da bicicleta, muito além do mero
uso lúdico, ao incrementar ao “cavalete com rodas” um sistema de direção,
freios e ajuste de selim, muito embora ainda bastante rudimentares compostos em
madeira. Conseguiu dar dirigibilidade ao veículo e mais equilíbrio ao condutor.
O veículo todo em madeira era impulsionado pela força dos pés sobre o chão.
Deu-lhe o nome de “máquina corredora”, ou laufmaschine
em alemão. Conseguiu percorrer cerca de 14 quilômetros de distância com sua
máquina, algo impensável no percurso a pé em seu tempo!
O "celerífero", cavalete sem direção |
A região do Barão
Drais ficaria conhecida na história como o centro da indústria automotriz
alemã! No entanto, o berço da indústria que modificou todo um modo de agir e se
deslocar foi o da bicicleta, que antecedeu em pelo menos 40 anos o boom da indústria automobilística!
Em 12 de janeiro de 1818 Drais patenteou seu invento na
Alemanha e França. Viajara por quase toda a Europa anunciando seu invento, mas
foi ridicularizado pelo velho conservadorismo vitoriano e terminou falido. Mas,
para a consternação de seus detratores, a invenção foi sendo aperfeiçoada
conforme os avanços tecnológicos, à base de ferro em sua estrutura. Dez anos
após houve a primeira competição entre “draisianas”, em Munique. A velocidade
média na ocasião era de 8,6 km/h, sem um sistema de propulsão. Somente a partir
de 1839 que um inventor escocês, Mcmillan, desenvolveu o sistema de propulsão
por pedais (espécie de virabrequim) e, mais tarde, um carroceiro, Pierre
Michaux, criou o pedal na roda dianteira, dando origem ao velocípede4.
Drais morreu em 1851,
pobre e cheio de inimigos por causa de seu apoio a movimentos liberais em plena
época de absolutismo e religiosidade, tendo seu título de nobreza cassado. Dez
anos após a sua morte é que a bicicleta ganhou conotações de mercado e de
processo industrial.
A MÁQUINA DE PROPULSÃO HUMANA MAIS VELOZ À ÉPOCA
Maior velocidade, maiores distâncias |
Em Paris, a partir de 1868, os biciclos vão ganhando terreno
na indústria: bicicletas, triciclos debutam como mercadorias desejáveis e
plenamente sustentáveis. Havia até mesmo locais específicos para os ciclistas
trafegarem desde 1862, as primeiras “ciclovias”.
James Starley cria um modelo, patenteado em 1870, bastante
peculiar: em aço, com rodas radiadas, pneus de borracha maciça e com um sistema
de freios bem mais eficaz. Sua roda dianteira possuía 59 polegadas de diâmetro (1,49m)
e a de trás cerca de ¼ do tamanho. Assim, quanto maior a roda, tanto maior a
distância percorrida em cada giro. Cada pedalada implicaria maior velocidade.
Alcançava velocidades incríveis, de até 40km/h, embora ficasse conhecida como as
terríveis e caras “bones harkers”5. A
partir de 1870 a evolução foi bem rápida. Sete anos depois apareciam as
primeiras transmissões por correia de tração e engrenagens. Evidentemente que
somente privilegiados da elite poderiam ter uma dessas! Assista ao vídeo relatando as primeiras corridas: https://youtu.be/8HRpVV_x3N4
MASSIFICAÇÃO DO VEÍCULO DE DUAS RODAS, FUROR NOS COSTUMES
Aos poucos foram
surgindo as bicicletas “sociáveis” e de “segurança”, veículos individuais ou da
família. Passam a circular em profusão pelas ruas europeias, alterando
significativamente o modo de vida acomodado das famílias e grupos de pessoas da
Era Vitoriana: a ideia de distância urbana fora quebrada, velocidades de
deslocamento ganharam novas visões e entendimentos. Todavia, o que mais
despertou na população foi a ideia da liberdade de individual, típicas e
arraigadas dentro de uma vida urbana que emergia rapidamente. Quer dizer, as
bicicletas, muito mais ágeis e práticas do que charretes e pesadas carruagens,
ganham espaço na sociedade. Os revolucionários veículos eram limpos, ágeis,
exigiam pouca manutenção, além de cobrir grandes distâncias com rapidez e
liberdade!
Em 1875 foi inaugurada a primeira fábrica de bicicletas do
mundo, a Companhia Michaux, com 200 operários que produziam centenas de
bicicletas por ano. Em 1887 as bicicletas ganharam os pneus de borracha, aproximando-as
dos modelos atuais. A preocupação com a segurança começou na década de 1880, a
fim de diminuir os riscos de queda. Surgem as bicicletas com rodas iguais, bastante
similares às atuais. Na década seguinte tornaram-se parte de instrumentos de
guerra na Inglaterra.
INSTRUMENTO DA EMANCIPAÇÃO FEMININA
No sentido de romper barreira, a história da bicicleta
confunde-se com as lutas da emancipação feminina nos estertores do século XIX e
da luta pelo sufrágio universal. São as palavras de uma feminista que nos dão o
exemplo: “Andar de bicicleta fez mais pela emancipação da mulher do que
qualquer outra coisa no mundo” (Susan Brownell Anthony). A bicicleta permitiu que as mulheres pudessem se deslocar sozinhas de
um lugar para outro, além de ter influenciado até na questão da vestimenta e da
moda: a moda teve que se adequar às novas exigências das mulheres, ao descartar
espartilhos e penduricalhos que lhe limitavam os movimentos, jogaram no lixo
cerca de quatro quilos de roupas inúteis! A “magrela” foi um dos
dispositivos sociais e políticos que possibilitaram a conquista da autonomia da
mulher na sociedade contemporânea. Susan ainda reflete: “Penso o seguinte sobre
andar de bicicleta: ela fez mais pelas mulheres do que qualquer coisa neste
mundo”. Para maiores detalhes, muito bom ler o divertido e belo livro Wheels of Change: How Women Rode the Bicycle
to Freedom5
Bicicleta muda hábitos conservadores |
As americanas e francesas formaram a vanguarda no uso da
bicicleta para fins políticos. Elizabeth Staton, também feminista, chegou a
afirmar, sem exageros, que “a mulher
está pedalando em direção ao sufrágio”. Dessa forma, passa a circular
livremente pelo espaço público, possibilita-a ir mais longe, reunir-se com
outras mulheres sem o subterfugio opressivo dos homens, quer para tratar de
seus direitos como também para se divertir!
EFEITOS NEGATIVOS DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Ao mesmo tempo em que a Revolução Industrial liberou as
forças produtivas da Humanidade, ela forjou o seu fim no mesmo passo. Ou seja,
o modo de produção cimentado no binômio produção/consumo levou a que florestas
fossem devastadas, rios poluídos, as questões ambientais e sociais desprezadas
em nome do “progresso” contínuo e desenfreado e que o esgotamento dos recursos
naturais comprometeria a qualidade de vida de todos, que a Humanidade adoecesse
como consequência da avidez consumista. Neste quadro, a indústria automobilística
cresceu de forma desordenada, sob o fenômeno do fordismo. Hoje os automóveis
entopem as ruas de todas as megalópoles do mundo. Desta forma, a antes
prolífica indústria ciclística agora é suplantada pelo fordismo desde a década
de 20 do século passado.
Portanto, hoje a
bicicleta, como no passado do Barão Von Drais, tem uma importante função: a de
mudar os costumes, aqueles há muito esquecidos, tais como passear pelas ruas e
avenidas da cidade e veredas dos campos, romper com o sedentarismo consumista.
Pode inclusive superar a atual crise econômica mundial de superprodução, uma
vez que os cicloativistas defendem um consumo mais moderado, conforme as
necessidades e não os excessos! Não devemos tratar a bicicleta apenas como
um brinquedo ou veículo desportivo; ela deve ter um aspecto inclusivo na
sociedade, muito embora no Brasil seja um produto ainda muito caro, pois tem em
seu preço 40% de impostos, enquanto jatinhos e iates de luxo são isentos!!! O
futuro mais humanizado da sociedade, num mundo melhor e sem exploração pode
começar com o uso sistemático da bicicleta como módulo de mobilidade
sustentável, quer por lazer quer por meio de transporte!
Encerro com um pensamento em homenagem ao mestre: “Um passo
em cima de um velocípede era, na verdade, menos pressão sobre os pés” [Barão
Karl von Drais]. E me permito humildemente complementar o pensamento: e menos pressão para a
cabeça!!!
Notas
2 EDWARDS
A.,LEONARD M., Fixed, Global fixed gear bike culture, Published in 2009 y
Laurence
King Publishing Ltd, London;
3 http://www.nytimes.com/2005/01/30/books/chapters/bicycle.html
Trata-se dos princípios teóricos da “carruagem humana” e suas remissões físicas
e matemáticas que antecederam a indústria da bicicleta e automobilística;
4 EDWARDS
A.,LEONARD M. Idem;
5 “Chacoalha
ossos”;