quarta-feira, 28 de junho de 2017

200 ANOS DA BICICLETA: Duas rodas que mudaram - e podem mudar - o modo de ser e o Ser!

A "draisiana" criada há 200 anos
By André Fava                       

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ada vez mais difundida nos hábitos urbanos nas grandes metrópoles, a bicicleta está completando 200 anos de existência e sofisticação! De simples brinquedo evoluiu para um dos veículos mais utilizados no mundo – somente na China são mais de 500 milhões de bicicletas –, inclusive proporcionando rupturas nos costumes e nas tendências políticas como a emancipação da mulher. Notícias esparsas indicam que a bicicleta teria sido idealizada por Leonardo da Vinci esboçada em seu Codex Atlanticus, mas historiadores contestam a versão, afirmando ser falsa1. O tema é controverso. Entretanto, a bicicleta deixa os esboços em papel para dar seus primeiros sinais de existência numa época em que as fontes de energia estavam sendo questionadas e estudadas cuja máquina a vapor começava a despontar no horizonte tecnológico da Revolução Industrial no Século XVIII. Nasceram quase que simultaneamente enquanto mentalidade e funcionalidade! Ou seja, vivia-se uma época de grande expansão econômica e, consequentemente, da indústria que cria novas necessidades materiais, o que redunda numa fé inabalável na realização da ciência e na liberdade individual. A máquina viria para libertar o trabalho do Homem, conceder-lhe mais tempo para o livre pensar e o lazer, enfim melhorar as condições de vida. O progresso seria um moto-contínuo perpétuo e inabalável da Humanidade. Claro, crença, nada mais... Guerras e conflitos virão em nome da disputa de mercados.

 No Século XIX a Revolução Industrial chega à França e logo depois à Alemanha. A Europa se via como o centro do mundo! Pesquisas científicas são estimuladas, engenheiros são formados, inventores de todos os matizes surgem como emuladores da nova ordem econômica. Tudo em prol do aperfeiçoamento tecnológico: locomotivas a vapor, barcos a vapor, o telégrafo, fotografia, o telefone (nos EUA) e a... bicicleta como alternativa ao uso do cavalo e carroças!

O Barão Von Drais, inventor da bicicleta
DO “CELERÍFERO” À “DRAISIANA”, AS DUAS RODAS QUE TRANSFORMARAM O MUNDO!

Nesta época de profundas estratificações sociais – aumento da riqueza mundial ao lado do empobrecimento da maioria da população – e expansão econômica em nível mundial está em correspondência com a mentalidade desta fase de pleno otimismo. Outrossim, vivia-se uma crise em decorrência de desastres climáticos (erupção do vulcão na Indonésia), que devastaram a agricultura, provocaram a redução dos animais de tração – cavalos foram devorados... provocando a escassez do mesmo.

Eis que um alemão, em 1817, o engenheiro agrônomo, Barão Karl von Drais desenvolve um projeto de bicicleta, cujo objetivo era andar pelos campos sem a utilização de cavalos ou carroças, aperfeiçoou o velho aparato de duas rodas chamado “celerífero”, um brinquedo criado por Sivrac2 em 1790 com duas rodas retas sem direção. O barão pode ser considerado o pioneiro moderno da bicicleta, muito além do mero uso lúdico, ao incrementar ao “cavalete com rodas” um sistema de direção, freios e ajuste de selim, muito embora ainda bastante rudimentares compostos em madeira. Conseguiu dar dirigibilidade ao veículo e mais equilíbrio ao condutor. O veículo todo em madeira era impulsionado pela força dos pés sobre o chão. Deu-lhe o nome de “máquina corredora”, ou laufmaschine em alemão. Conseguiu percorrer cerca de 14 quilômetros de distância com sua máquina, algo impensável no percurso a pé em seu tempo!

O "celerífero", cavalete sem direção
Por seus insistentes estudos, fracassos e êxitos, Drais foi Pioneiro das duas rodas: “Este conceito curioso, revelado no verão de 1817, se tornaria o primeiro veículo terrestre montado por humano e uma séria oferta pela aceitação pública. Além disso, a draisine marca o primeiro passo significativo em direção à bicicleta básica, o veículo compacto e com pedal que finalmente resolveu o enigma de Ozanam”3.

A região do Barão Drais ficaria conhecida na história como o centro da indústria automotriz alemã! No entanto, o berço da indústria que modificou todo um modo de agir e se deslocar foi o da bicicleta, que antecedeu em pelo menos 40 anos o boom da indústria automobilística!

Em 12 de janeiro de 1818 Drais patenteou seu invento na Alemanha e França. Viajara por quase toda a Europa anunciando seu invento, mas foi ridicularizado pelo velho conservadorismo vitoriano e terminou falido. Mas, para a consternação de seus detratores, a invenção foi sendo aperfeiçoada conforme os avanços tecnológicos, à base de ferro em sua estrutura. Dez anos após houve a primeira competição entre “draisianas”, em Munique. A velocidade média na ocasião era de 8,6 km/h, sem um sistema de propulsão. Somente a partir de 1839 que um inventor escocês, Mcmillan, desenvolveu o sistema de propulsão por pedais (espécie de virabrequim) e, mais tarde, um carroceiro, Pierre Michaux, criou o pedal na roda dianteira, dando origem ao velocípede4.

Drais morreu em 1851, pobre e cheio de inimigos por causa de seu apoio a movimentos liberais em plena época de absolutismo e religiosidade, tendo seu título de nobreza cassado. Dez anos após a sua morte é que a bicicleta ganhou conotações de mercado e de processo industrial.

A MÁQUINA DE PROPULSÃO HUMANA MAIS VELOZ À ÉPOCA

Maior velocidade, maiores distâncias
Em Paris, a partir de 1868, os biciclos vão ganhando terreno na indústria: bicicletas, triciclos debutam como mercadorias desejáveis e plenamente sustentáveis. Havia até mesmo locais específicos para os ciclistas trafegarem desde 1862, as primeiras “ciclovias”.

James Starley cria um modelo, patenteado em 1870, bastante peculiar: em aço, com rodas radiadas, pneus de borracha maciça e com um sistema de freios bem mais eficaz. Sua roda dianteira possuía 59 polegadas de diâmetro (1,49m) e a de trás cerca de ¼ do tamanho. Assim, quanto maior a roda, tanto maior a distância percorrida em cada giro. Cada pedalada implicaria maior velocidade. Alcançava velocidades incríveis, de até 40km/h, embora ficasse conhecida como as terríveis e caras “bones harkers”5. A partir de 1870 a evolução foi bem rápida. Sete anos depois apareciam as primeiras transmissões por correia de tração e engrenagens. Evidentemente que somente privilegiados da elite poderiam ter uma dessas! Assista ao vídeo relatando as primeiras corridas: https://youtu.be/8HRpVV_x3N4

MASSIFICAÇÃO DO VEÍCULO DE DUAS RODAS, FUROR NOS COSTUMES

Aos poucos foram surgindo as bicicletas “sociáveis” e de “segurança”, veículos individuais ou da família. Passam a circular em profusão pelas ruas europeias, alterando significativamente o modo de vida acomodado das famílias e grupos de pessoas da Era Vitoriana: a ideia de distância urbana fora quebrada, velocidades de deslocamento ganharam novas visões e entendimentos. Todavia, o que mais despertou na população foi a ideia da liberdade de individual, típicas e arraigadas dentro de uma vida urbana que emergia rapidamente. Quer dizer, as bicicletas, muito mais ágeis e práticas do que charretes e pesadas carruagens, ganham espaço na sociedade. Os revolucionários veículos eram limpos, ágeis, exigiam pouca manutenção, além de cobrir grandes distâncias com rapidez e liberdade!

Em 1875 foi inaugurada a primeira fábrica de bicicletas do mundo, a Companhia Michaux, com 200 operários que produziam centenas de bicicletas por ano. Em 1887 as bicicletas ganharam os pneus de borracha, aproximando-as dos modelos atuais. A preocupação com a segurança começou na década de 1880, a fim de diminuir os riscos de queda. Surgem as bicicletas com rodas iguais, bastante similares às atuais. Na década seguinte tornaram-se parte de instrumentos de guerra na Inglaterra.

INSTRUMENTO DA EMANCIPAÇÃO FEMININA

No sentido de romper barreira, a história da bicicleta confunde-se com as lutas da emancipação feminina nos estertores do século XIX e da luta pelo sufrágio universal. São as palavras de uma feminista que nos dão o exemplo: “Andar de bicicleta fez mais pela emancipação da mulher do que qualquer outra coisa no mundo” (Susan Brownell Anthony). A bicicleta permitiu que as mulheres pudessem se deslocar sozinhas de um lugar para outro, além de ter influenciado até na questão da vestimenta e da moda: a moda teve que se adequar às novas exigências das mulheres, ao descartar espartilhos e penduricalhos que lhe limitavam os movimentos, jogaram no lixo cerca de quatro quilos de roupas inúteis! A “magrela” foi um dos dispositivos sociais e políticos que possibilitaram a conquista da autonomia da mulher na sociedade contemporânea. Susan ainda reflete: “Penso o seguinte sobre andar de bicicleta: ela fez mais pelas mulheres do que qualquer coisa neste mundo”. Para maiores detalhes, muito bom ler o divertido e belo livro Wheels of Change: How Women Rode the Bicycle to Freedom5

Bicicleta muda
hábitos conservadores
As americanas e francesas formaram a vanguarda no uso da bicicleta para fins políticos. Elizabeth Staton, também feminista, chegou a afirmar, sem exageros, que “a mulher está pedalando em direção ao sufrágio”. Dessa forma, passa a circular livremente pelo espaço público, possibilita-a ir mais longe, reunir-se com outras mulheres sem o subterfugio opressivo dos homens, quer para tratar de seus direitos como também para se divertir!

EFEITOS NEGATIVOS DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Ao mesmo tempo em que a Revolução Industrial liberou as forças produtivas da Humanidade, ela forjou o seu fim no mesmo passo. Ou seja, o modo de produção cimentado no binômio produção/consumo levou a que florestas fossem devastadas, rios poluídos, as questões ambientais e sociais desprezadas em nome do “progresso” contínuo e desenfreado e que o esgotamento dos recursos naturais comprometeria a qualidade de vida de todos, que a Humanidade adoecesse como consequência da avidez consumista. Neste quadro, a indústria automobilística cresceu de forma desordenada, sob o fenômeno do fordismo. Hoje os automóveis entopem as ruas de todas as megalópoles do mundo. Desta forma, a antes prolífica indústria ciclística agora é suplantada pelo fordismo desde a década de 20 do século passado.

Portanto, hoje a bicicleta, como no passado do Barão Von Drais, tem uma importante função: a de mudar os costumes, aqueles há muito esquecidos, tais como passear pelas ruas e avenidas da cidade e veredas dos campos, romper com o sedentarismo consumista. Pode inclusive superar a atual crise econômica mundial de superprodução, uma vez que os cicloativistas defendem um consumo mais moderado, conforme as necessidades e não os excessos! Não devemos tratar a bicicleta apenas como um brinquedo ou veículo desportivo; ela deve ter um aspecto inclusivo na sociedade, muito embora no Brasil seja um produto ainda muito caro, pois tem em seu preço 40% de impostos, enquanto jatinhos e iates de luxo são isentos!!! O futuro mais humanizado da sociedade, num mundo melhor e sem exploração pode começar com o uso sistemático da bicicleta como módulo de mobilidade sustentável, quer por lazer quer por meio de transporte!

Encerro com um pensamento em homenagem ao mestre: “Um passo em cima de um velocípede era, na verdade, menos pressão sobre os pés” [Barão Karl von Drais]. E me permito humildemente complementar o pensamento: e menos pressão para a cabeça!!!


Notas                  


2 EDWARDS A.,LEONARD M., Fixed, Global fixed gear bike culture, Published in 2009 y
Laurence King Publishing Ltd, London;

3 http://www.nytimes.com/2005/01/30/books/chapters/bicycle.html Trata-se dos princípios teóricos da “carruagem humana” e suas remissões físicas e matemáticas que antecederam a indústria da bicicleta e automobilística;

4 EDWARDS A.,LEONARD M. Idem;

5 “Chacoalha ossos”;