segunda-feira, 10 de julho de 2017

A “PRIMAVERA ÁRABE” E OS AMIGOS DA DEMOCRACIA DOS RICOS: Líbia retrocede centena de anos para acorrentar e escravizar seu povo e migrantes africanos subsaarianos fugidos da fome

 

O
choque da dura e nefasta realidade parece que não afetou em nada os arautos da tão propalada “primavera árabe” e, ainda no mesmo barco da contrarrevolução, os aríetes da “revolução árabe” somatizados em seus delírios das quentes noites de verão. Pungentes são os efeitos das centenas de milhares de bombas da OTAN sobre a Líbia em 2011 e as imensas chagas sobre a população. Devastado o país, o coronel Kadhaffi foi assassinado com requintes de crueldade e sadismo por mercenários a soldo da CIA e Mossad, comandados diretamente do Pentágono e a Casa Branca. Hillary Clinton comemorou em plena epifania esse “prêmio”, o corpo jazido ao chão do líder líbio... A quinta-coluna dos Clinton, e eversiva da esquerda, também aplaudiu orgasticamente o suplício do povo líbio aqui no Brasil: “a Primavera Árabe arrasta mais um ditador e abre a perspectiva do povo líbio desenvolver sua aspiração por um futuro livre de dominação. Esta ação também dará um novo impulso à revolução em toda região...”1. Restou o arraso das bombas, o pó, corpos e miséria. Quase sete anos do fim de Kadhaffi a guerra civil é a marca indelével do país, cuja economia não mais existe enquanto nação produtora. Vige uma terra sem lei, dominada por guerras fratricidas e por gangues sanguinárias. No lumiar desse caos absoluto, ressurge o tráfico de escravos em escala nunca antes vista. O status quo escravagista fora-lhe imposto a ferro e fogo pela ação militar e política das grandes potências capitalistas, com os Estados Unidos à cabeça.

 AS CATURRAS DA VOLTA AO UM PASSADO NEFASTO

"Mercadorias" descartáveis, retrocesso das forças produtivas
A criminosa operação militar adjunta de 43 países organizada pela OTAN sob o comando do então presidente Obama, aniquilou completamente as conquistas materiais e sociais adquiridas no período da em que foi instaurada a “jamahiriya”2, as quais conduziram a Líbia para o topo dos países mais desenvolvidos do mundo árabe. Nas décadas de 70 e 80 do século passado o país possuía a menor dívida externa do mundo! As palavras de Mario Maestri resumem bem o que fora a Líbia antes de sua aniquilação: “Por décadas, ao contrário do que ocorria com tunisianos, argelinos, egípcios, etc. não se viu na Europa um líbio à procura de um trabalho que encontrava em seu país. Ao contrário, o país terminou como destino de forte imigração de trabalhadores da África negra subsaariana, atualmente maltratados, torturados, executados por membros das ‘tropas revolucionárias’ arregimentadas pelo imperialismo...”3.

Não contentes em acabarem com a infraestrutura econômica (fontes de água potável, fontes energéticas, saneamento, hospitais, fábricas etc.), as grandes potências capitalistas do mundo ocidental transformaram a antiga e próspera nação em um bantustão atrasado onde a principal fonte “econômica” é o tráfico de escravos!

Contudo, havia outrora uma zona de passagem através da Líbia, porém sob controle e limitada. Na atualidade convertera-se em principal ponto de partida de migrantes para a Europa que fogem da miséria e da fome no continente africano. São os alvos das gangues e bandidos que os sequestram, estupram as mulheres, escravizam, vendem-nos e, amiúde são mortos como animais doentes, cujos corpos são desovados no fundo do Mediterrâneo.

Migrantes capturados são dispostos no mercado de escravos, ao serem “comprados” são conduzidos a ferro para grandes fazendas de enclaves agroexportadores. As condições de vida eram ainda piores do que a daqueles escravos da época colonial das Américas, pois são considerados “mercadorias descartáveis” não exigindo nenhum investimento de capital – “eles aparecem, vem e vão”... Não recebem alimentação suficiente; apenas para não definhar; vivem em locais insalubres rodeados de ratos e insetos repugnantes, com os quais suprem sua “alimentação”. A “fonte de lucro” do proprietário passa pela venda a outro “comprador”, antes que a “mercadoria” morra de inanição.

O Sul da Líbia tornou-se o reduto e vendeta de traficantes, milícias e grupos mafiosos, na cidade de Sabha, conhecida como “gueto de Ali”, um antigo presídio semiabandonado. Funciona assim: “sentávamos no chão e os líbios vinham nos escolher e nos comprar, como quem escolhe manga num mercado de frutas. Depois discutiam o preço”4, afirma um ex-escravo. Segundo dados oficiais da OIM (Organização Internacional da Migração)5 há pelo menos 300 mil pessoas nessas condições e tende a se agravar, isto num país onde cada vilarejo ou cidade pertence a uma milícia diferente e rivais entre si.

Ao Norte, a porta para a Europa, “os homens eram levados para uma praça ou um estacionamento, onde o mercado de escravos era realizado. Os moradores, descritos por ele como árabes, compravam os migrantes subsaarianos”, declarou Livia Manante, oficial da OIM no Níger.

Tanta hecatombe e reverso social recebeu o júbilo dos aliados da Casa Branca que insistiram fervorosamente com o aspecto “revolucionário” da queda do regime kadhafista. Disseram – e ainda hoje insistem - que a morte de Kadhaffi “...enterra de vez o antigo regime ditatorial e abre novas perspectivas para as massas na Líbia. É um alento também para a Primavera Árabe e os povos que lutam contra seus ditadores e são vítimas de repressão...”6. Mais ignóbil e falsificadora da realidade é quem afirma que “a OTAN inteveio (sic) para impedir um legítimo triunfo das milicias (sic) populares”7. Só embusteiros e fariseus com semelhante quilate podem assumir esta postura vergonhosa e sua crença inabalável no “amanhecer democrático”...

ABERTURA SINE QUA NON DE UMA “ERA GLACIAL” AO INVÉS DE “PRIMAVERA”...

Migrantes subsaarianos como alvos dos escravagistas árabes
Como vimos acompanhando o desenrolar do complexo tabuleiro político no Oriente Médio e Magreb, o resultado da mal chamada “primavera árabe” demonstra o desastre e arbítrio desse conceito cunhado por ninguém menos que a madame Clinton. A maioria dos “levantes” provocou recrudescimento dos aparatos repressivos contra as massas nos cinco principais países. Síria, Líbia e Iêmen estão sendo despedaçados por sangrentas guerras civis; Egito e Bahrein estão sofrendo na pele as consequências de um regime autocrático militarizado, numa situação bem pior do que antes, em 2011. Com a exceção da Tunísia, todos os referidos “levantes” foram patrocinados pelas ultrarreacionárias monarquias absolutistas do Golfo Pérsico chanceladas pelo Pentágono, a CIA e o Mossad.

Em Benghazi, cidade mais rica e detentora de poços de petróleo, berço do movimento reacionário defensores da volta da monarquia, moradores foram expulsos de suas casas pelas milícias, sob o comando do agente da CIA o general Khalifa Hifter8. Cidades líbias inteiras foram cercadas e entregues à própria sorte sem comida e água, muitas das quais se tornaram cidades fantasmas.

O papel desta “primavera” foi desorganizar e destruir uma nação inteira, colocar o país sob um monte de escombros e cinzas, tudo para facilitar a pilhagem das riquezas. Ações mobiliárias do Tesouro Nacional, US$ 180 bilhões, foram saqueadas na Europa e nos Estados Unidos, além de uma quantidade considerável em Ouro. Tudo roubado! Mas a morte de Kadhaffi, claro, foi o “alento” para colocar a Líbia na condição de uma “Somália do Mediterrâneo” e a custa de aproximadamente 130 mil líbios mortos pelas bombas da OTAN!!!! Hoje, grupos salafistas e jihadistas controlam a maior parte dos territórios do país, sendo que nenhum se sobrepõe ao outro, além de conferir refúgio aos criminosos do Daesh.

TAPA NA CARA DOS ADEPTOS DA DEMOCRACIA COMO VALOR UNIVERSAL

Muito longe de uma pseudoesquerda tentar adequar a dura realidade a seus sonhos das noites estelares de verão, a qual, na verdade, navega por oceanos de falsificação histórica. Primeiro afirmavam os “trotskistas” da LIT e da UIT9 que os “rebeldes” conduziam o processo revolucionário contra o “genocida sanguinário” Kadhaffi; depois, que a intervenção da OTAN foi para... “deter o processo revolucionário”. É o cúmulo do charlatanismo político-programático das correntes que se reclamam do campo operário. No entanto, não faltou cara de pau para desfraldar a bandeira reacionária do movimento pró-volta da monarquia do Rei Idrís quando o governo nacional-burguês de Kadhaffi foi deposto pelas hostes imperiais organizadas e insufladas pelo monstro do Norte!

Um fato esquecido por todo mundo precisa ser levantado: os primeiros ataques que culminaram com o assassinato de Kadhaffi foram ordenados desde o Palácio do Planalto, quando Obama visitava o Brasil10, numa clara ruptura de acordos diplomáticos, não questionado pela então presidenta Dilma. As hienas dão risada enquanto se fartam do banquete carnificínico ante suas presas indefesas...

Seis anos após a “revolução” capitaneada pelos “rebeldes” (da OTAN e da CIA), a Líbia está mergulhada num profundo caos, sua economia praticamente não existe mais – exceto em Benghazi que está dominada por enclaves transnacionais do petróleo. O único mercado “em expansão” é o de seres humanos como substrato da retração das forças produtivas. Triste e lamentável programaticamente o papel da esquerda trotskista durante os ataques covardes da coalizão capitalista contra um pequeno país no Norte Africano rodeado por imensos desertos. Postura que decorre em defesa de uma luta in abstract por uma democracia (burguesa) contra “regimes autoritários”, encampando de vez o modus operandi do imperialismo ianque para justificar intervenções políticas e/ou militares diretas em países não-alinhados com o american way life e o modo ocidental de prover o consumo capitalista descartável.

Síria, Cuba e Venezuela encaixam-se neste entendimento calamitoso... Significa, sem rodeios, acomodar-se à barbárie do modo de produção onde o que tem o poder de decisão é o dinheiro e o vislumbre de acumulá-lo mais e mais a custa do sacrifício da maioria da população mundial.

Notas:                          


2 “Estado das massas”, fundado por Kadhaffi em 1977: “Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia”;







9 Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT); Unidade Internacional dos Trabalhadores (UIT): ambas organizações adeptas das teses de Nahuel Moreno. Ambas organizações são defensoras das “revoluções democráticas triunfantes”;