sábado, 21 de abril de 2018

INCONFIDÊNCIA MINEIRA, “CONSPIRAÇÃO” SEM POETAS nos marcos da crise e decadência monárquica de Portugal



M
uito se tem falado sobre a “Inconfidência Mineira”1, o martírio de “Tiradentes”, o que ambos os fatos representaram para a evolução política do Brasil dos séculos XVII e XVIII. Lembrando também do uso que certa historiografia fez desta “epopeia” de uma “conspiração” que nunca houve: perseguir, prender, torturar e assassinar pelo simples fato de existir como pensamento, um ideal de liberdade liberal, nunca colocados em prática pelos representantes da elite. É preciso ter a dimensão de tempo e espaço dos acontecimentos que foram forjados à luz da decadência da “metrópole” lusitana, na mesma proporção que se esgotavam os ciclos da economia brasileira, sempre determinada pela economia europeia. As idas e vindas de ciclos coloniais, o crescente processo de urbanização das cidades estava diretamente vinculado à economia de extração do ouro aluvial, durante a qual foi se fortalecendo uma camada média de agentes da Coroa, cada vez mais descontente com os rumos que o exclusivismo colonial tomava. O antigo sistema colonial despedaçava-se gradativamente ao longo do século XVII, e com ele a superficialidade opulenta da corte portuguesa.

 OPULÊNCIA PARA ESCONDER IMENSA POBREZA DOS TRABALHADORES

As regiões que hoje compreendem os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Bahia viveram o auge da extração do ouro nos primeiros 60 anos do século XVII, estimulados pela Coroa portuguesa em razão da crise criada com o fim da economia açucareira. Entram em cena os “Bandeirantes” que saem de uma empobrecida São Paulo em busca de ouro no interior do país, destacando-se as anteriormente referidas regiões. Rapidamente o ouro de aluvião esgotou-se. Foram necessárias novas técnicas de prospecção e extração, o que exigia um assentamento permanente nas minas, dando início à urbanização de cidades mineiras como São João del Rey, Mariana, Ouro Preto etc. Necessidades dos novos habitantes permitiram o surgimento de extratos sociais bem distintos: uma classe média forte e influente - artesãos, profissionais das minas, comerciantes, militares, artistas, músicos, poetas e intelectuais – cujos membros muitos foram estudar na Europa, aderindo ao Arcadismo (movimento na poesia que se batia com o clero e a nobreza, contrapunha-se ao mesmo tempo à estética bizantina do Barroco).

A concentração urbana, contudo, esteve muito mais voltada para centralizar o controle sobre a produção aurífera do que propriamente um fenômeno de aburguesamento das elites coloniais. Quanto mais próximos estivessem os produtores entre si, melhor seria para o fisco da Coroa! Cobravam imposto sobre os escravos, as extrações e proibia a circulação de ouro na colônia, impondo a obrigatoriedade de manufatura dos lingotes (tijolos) para facilitar o austero controle.

A sanha arrecadatória da Coroa portuguesa correspondia à mecânica de pagar acordos realizados com a Inglaterra que aos poucos se solidificava como potência econômica mundial ao dominar as rotas marítimas e a tecnologia fabril e do vapor. O ouro que Portugal extraia do Brasil passava para as mãos da Inglaterra, deixando aquele país na condição de mero intermediário encarregado dos altíssimos custos de produção (extração e transporte). Como resultado, ao lado da camada média de agentes do Estado, constituía-se uma grande massa de pobres e desvalidos, da qual “Tiradentes” era um dos extratos remanescentes. Paradoxalmente, o ouro que Portugal extraia foi causa da sua ruína econômica, colocando o país numa condição de extrema inferioridade em comparação aos novos impérios coloniais que se formavam na Europa nos marcos da crise do Antigo Sistema Colonial.

As expressões desta crise vinham na ascensão dos iluministas, principalmente o pós-racionalismo cartesiano. Os ideais de liberdade teriam o seu mais fiel representante na figura de Rousseau. Destacam-se neste contexto, as críticas enfáticas à Igreja, nas quais flui um forte sentimento anticlerical. Destes, o mais importante acontecimento que viria a selar todo um processo de retrocesso do velho colonialismo: a independência das 13 colônias dos Estados Unidos.

DIANTE DA COVARDIA E PERFÍDIA DAS ELITES, TIRADENTES LEVOU AS ÚLTIMAS CONSEQUENCIAS SEUS IDEAIS

Provável imagem real de Tiradentes,
muito distante daquela estilizada
como, belo ou na condiçao de "Cristo"
pela historiografia oficial
Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, foi um homem do povo, pobre, sem eira-nem-beira, considerado muito feio, alto e magro, mas que acreditava piamente nos seus sonhos de emancipação social. Sofrera na pele todos os preconceitos da elite por sua condição social, sua classe. O desprezo era tal que Claudio Manoel da Costa o considerava “um idiota”. O ouro havia criado uma espécie de plutocracia nas minas gerais, a qual com a queda do governo pombalino que a favorecia começa a se revoltar com o novo regime de austeridade implantado pela Coroa em 1783, por intermédio do governador Cunha Menezes, cujo único mérito fora unir ódio de toda sociedade contra sua administração corrupta e decrépita. Foi responsável pela destituição de Tiradentes do cargo de alferes com o fito de colocar apadrinhados seus. Não demorou muito, o asqueroso governador foi substituído pelo terrível Visconde de Barbacena (1788) na condição de “moralizador” do establishment e depositário de um enrijecimento da “Derrama”, acirrando ainda mais os ânimos da rica elite regional. Posteriormente, ele mesmo decretaria o fim do execrável imposto.

Portugal ignorava a realidade no Brasil. Acreditava que a redução da produção aurífera deu-se em razão do contrabando, do comércio ilegal e da contravenção, nunca tiveram a dimensão técnica de que acontecia por causa do esgotamento do veio de ouro conhecido como de aluvião. Estupidamente, tentava compensar com o aumento de impostos e um rígido controle do que entrava e saía das minas. Os sentimentos antilusitanos afloravam nas regiões das minas gerais. Somente na década de 1790 é que tomaram consciência do que acontecia, tendo repercussão fundamental sobre o julgamento dos “inconfidentes”.

Mas onde entra o Joaquim Xavier? Toma o barco da História após ser destituído do posto de alferes. Sua ambição era seguir carreira militar, por isso ficara indignado com a nova situação que lhe impuseram – por não ter família, o Exército cumpriria esta função – passando a desempenhar uma vida de tropeiro, minerador falido e de dentista. Nessas andanças conhece intelectuais que lhe ensinaram ideais liberais iluministas, os quais resolve difundir pelas inúmeras regiões que visitava. Ficou bastante conhecido, por essa sua brava índole. A seu modo, mesmo com muita fantasia, ao menos, fazia propaganda dos ideais de liberdade sem, no entanto, organizar algum grupo ou elaborar um programa de ação rebelde, não ultrapassava posições empíricas e de senso comum.

Neste ínterim, seus “parceiros” intelectuais e letrados de toda ordem, agiam com a proficiência dos irresponsáveis. Falavam de conspiração durante banquetes regados a bebedeiras, nos bordeis, nos conclaves de ricos endividados sob a presença de representantes do governo e da Coroa. A vanguarda ativa do grupo era composta pelo padre Correia e Melo (latifundiário escravocrata), Alvarenga Peixoto (latifundiário, magistrado que vendia sentenças), outro padre, o Oliveira Rolim (vigarista, charlatão, agiota, falsário etc. etc.), Freire de Andrade (o “paspalhão” do grupo) e, claro, Tiradentes (por ter consigo informações captadas dos mais distantes lugares).

Bandeira criada por Tiradentes, com
complemento dos arcadistas
De acordo com o professor Roberto Lopes (2000): “A expressão Inconfidência Mineira é utilizada para designar aquele esboço de conspiração ocorrido em Ouro Preto, entre os fins de 1788 e começos de 1789. No conjunto... não foi além de reuniões, com variados graus de comprometimento...”2 sem apresentar maiores capacidades de articulação entre os vários grupos de descontentes. Como pudemos ver, não foi um movimento de letrados, uma “conspiração dos poetas” tal qual nos ensinam erroneamente na escola. Os arcadistas participaram muito de soslaio do movimento, muito embora suas ideias o influenciassem significativamente. Não havia unidade programática num Brasil imenso territorialmente, muitos defendiam a permanência da escravidão porque vislumbravam tomar as terras da Coroa e assumirem a condição de terratenentes; não sabiam o que fazer caso conseguissem derrubar o governo Barbacena. De concreto, foi a proposta de Tiradentes: a bandeira mineira de um triangulo representando a Santíssima Trindade... Entretanto, a Derrama3 constituía-se no aspecto centrípeto do programa dos “conjurados”.

Não obstante, o vasto oceano de ideias pelo qual Joaquim Xavier singrava seus sonhos era costeado por um território inóspito no qual o meio cultural-político impossibilitava qualquer postura que tendesse para o campo revolucionário. Os próprios vícios sociais da época, expresso na corrupção endêmica fundamentava o antigo sistema colonial não fugiam dos inconfidentes, apesar de haver historiadores que pleiteiam uma abordagem hagiográfica ao encarar os personagens nos fatos! Tiradentes, por isso foi o elemento que concentrava em si o espírito contestatório, porém nada “santo”.

CONDENAR UM POBRE PARA “DESMORALIZAR” TODO O MOVIMENTO: NÃO HÁ POESIA SOBRE A SOMBRA DO PATÍBULO...

Um fato aparentemente sem importância iria desencadear uma profunda mudança nos rumos dos “inconfidentes”. Joaquim Silvério dos Reis fora convocado para prestar contas à Fazenda Real que o acusou de fraude. Amedrontado, como forma de livrar-se de uma possível prisão começou a delatar o movimento de seus companheiros. Seu objetivo, o perdão da dívida causada pela Derrama. Detonada a crise, o Visconde de Barbacena determinou o fim do odiado imposto, como forma de enfraquecer os “sediciosos” em 23 de março de 1789, e instituiu um cerco repressivo violento. As prisões aconteciam aos cântaros. Apavorados uns acusavam os outros e outros acusavam uns... Ou então, como Claudio Manoel da Costa, foram “suicidados” na prisão, não sem antes delatar seus companheiros de viagem.

O visconde enviou Joaquim Silvério para o Rio de Janeiro, onde estava Tiradentes, para espioná-lo e informar seus passos aos órgãos repressivos locais. As tropas do vice-rei chegaram a amigos de Tiradentes, os prenderam graças ao vergonhoso papel de Joaquim Silvério, que sob severa tortura revelaram onde estava o perigoso “meliante”. Começou o suplício do Tiradentes a partir do dia 10 de maio de 1789, durante três anos seguidos. Todos os prisioneiros foram condenados a duras penas: degredo perpétuo, prisão de padres e penas de morte por enforcamento em praça pública.

Contudo, tratava-se de um espetáculo jurídico (caso fosse hoje seria midiático-televisivo!). Quando os condenados caminhavam para o patíbulo foi apresentada uma carta régia (redigida em 1790) que comutava a pena dos condenados. Durante dois anos fora montada uma farsa, com o objetivo de livrar de responsabilidade a Coroa das cruéis execuções, além de afirmar o caráter “benevolente” e “piedoso” da Coroa portuguesa. O único que teve a pena mantida fora... Joaquim Xavier, o Tiradentes! Assumira a condição de símbolo para o governo português: um julgamento-espetáculo de um homem simples e pobre que “liderou” um amplo movimento, a medida certa para a desmoralização (via preconceito) dos rebeldes inconfidentes. O governo lusitano transformara-o em chefe para toma-lo como exemplo a quem ousar enfrentar as forças coloniais.

Praça da Lampadosa (atual Praça Tiradentes no centro do Rio de Janeiro) enfeitada com flores e adornos, exaltações histéricas de clérigos e políticos à rainha, tropas nas ruas, no dia 21 de abril de 1792, Tiradentes teve cabelo e barba raspados como humilhação, fora executado aos 46 anos, na forca sob a orientação de um ex-escravo, Jerônimo Capitânia. Não há poesia sobre a sombra do patíbulo, nem com o esquartejamento de seu corpo... Ela só pode existir em plena liberdade: “os seus tristes Inventores / Já são réus - pois se atreveram / a falar em Liberdade / (Que ninguém sabe o que seja), / Liberdade, essa palavra / Que o sonho humano alimenta / Que não há ninguém que explique / E ninguém que não entenda”4.

Os inconfidentes deram o passo inicial rumo ao processo emancipatório em relação a Portugal. Muitos embates vieram após a barbaridade armada contra Tiradentes. Os conjurados organizaram uma trama frágil, ficando limitada intenção que nunca vingou, mas abriu caminhos para outros movimentos anticoloniais futuros espalhados por todo o território brasileiro, um processo que até hoje não está encerrado a custa de muitos mártires e lutadores sociais em busca de uma sociedade mais equânime, sem exploração.


NOTAS                    

1 Consultar Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. In http://portaldainconfidencia.iof.mg.gov.br/leitura/web/v1?p#. Acesso em 21 de abril de 2018. Inconfidentes por serem considerados traidores das ordens da Coroa portuguesa. Os “Autos da Devassa” do historiador e republicano Alexandre José de Melo Morais Filho são os documentos originais da Devassa, que Melo Morais descobriu largados dentro de um saco verde, no prédio do Arquivo Nacional.

2 LOPEZ, Luiz Roberto. A inconfidência mineira. Editora da Universidade. UFRGS. Porto Alegre, 2000.

3 Derrama: imposto extra cobrado sobre o quinto, ou seja, sobre o ouro encontrado sobre os domínios portugueses.

4 MEIRELES, Cecília. O romanceiro da inconfidência.