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uito se tem falado sobre a “Inconfidência Mineira”1, o martírio de “Tiradentes”, o que ambos os
fatos representaram para a evolução política do Brasil dos séculos XVII e
XVIII. Lembrando também do uso que certa historiografia fez desta “epopeia” de
uma “conspiração” que nunca houve: perseguir, prender, torturar e assassinar
pelo simples fato de existir como pensamento, um ideal de liberdade liberal,
nunca colocados em prática pelos representantes da elite. É preciso ter a
dimensão de tempo e espaço dos acontecimentos que foram forjados à luz da
decadência da “metrópole” lusitana, na mesma proporção que se esgotavam os ciclos
da economia brasileira, sempre determinada pela economia europeia. As idas e
vindas de ciclos coloniais, o crescente processo de urbanização das cidades
estava diretamente vinculado à economia de extração do ouro aluvial, durante a
qual foi se fortalecendo uma camada média de agentes da Coroa, cada vez mais
descontente com os rumos que o exclusivismo colonial tomava. O antigo sistema
colonial despedaçava-se gradativamente ao longo do século XVII, e com ele a
superficialidade opulenta da corte portuguesa.
As regiões que hoje compreendem os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato
Grosso e Bahia viveram o auge da extração do ouro nos primeiros 60 anos do
século XVII, estimulados pela Coroa portuguesa em razão da crise criada com o
fim da economia açucareira. Entram em cena os “Bandeirantes” que saem de uma
empobrecida São Paulo em busca de ouro no interior do país, destacando-se as anteriormente
referidas regiões. Rapidamente o ouro de aluvião esgotou-se. Foram necessárias
novas técnicas de prospecção e extração, o que exigia um assentamento
permanente nas minas, dando início à urbanização de cidades mineiras como São
João del Rey, Mariana, Ouro Preto etc. Necessidades dos novos habitantes
permitiram o surgimento de extratos sociais bem distintos: uma classe média
forte e influente - artesãos, profissionais das minas, comerciantes, militares,
artistas, músicos, poetas e intelectuais – cujos membros muitos foram estudar
na Europa, aderindo ao Arcadismo (movimento na poesia que se batia com o clero
e a nobreza, contrapunha-se ao mesmo tempo à estética bizantina do Barroco).
A concentração urbana, contudo, esteve muito mais voltada para
centralizar o controle sobre a produção aurífera do que propriamente um
fenômeno de aburguesamento das elites coloniais. Quanto mais próximos
estivessem os produtores entre si, melhor seria para o fisco da Coroa! Cobravam
imposto sobre os escravos, as extrações e proibia a circulação de ouro na
colônia, impondo a obrigatoriedade de manufatura dos lingotes (tijolos) para
facilitar o austero controle.
A sanha arrecadatória da Coroa portuguesa correspondia à mecânica de
pagar acordos realizados com a Inglaterra que aos poucos se solidificava como
potência econômica mundial ao dominar as rotas marítimas e a tecnologia fabril
e do vapor. O ouro que Portugal extraia
do Brasil passava para as mãos da Inglaterra, deixando aquele país na condição
de mero intermediário encarregado dos altíssimos custos de produção (extração e
transporte). Como resultado, ao lado da camada média de agentes do Estado, constituía-se
uma grande massa de pobres e desvalidos, da qual “Tiradentes” era um dos extratos
remanescentes. Paradoxalmente, o ouro que Portugal extraia foi causa da sua
ruína econômica, colocando o país numa condição de extrema inferioridade em comparação
aos novos impérios coloniais que se formavam na Europa nos marcos da crise do
Antigo Sistema Colonial.
As expressões desta crise vinham na ascensão dos iluministas,
principalmente o pós-racionalismo cartesiano. Os ideais de liberdade teriam o
seu mais fiel representante na figura de Rousseau. Destacam-se neste contexto,
as críticas enfáticas à Igreja, nas quais flui um forte sentimento anticlerical.
Destes, o mais importante acontecimento que viria a selar todo um processo de
retrocesso do velho colonialismo: a independência das 13 colônias dos Estados
Unidos.
DIANTE DA COVARDIA E PERFÍDIA DAS ELITES, TIRADENTES LEVOU AS ÚLTIMAS
CONSEQUENCIAS SEUS IDEAIS
Provável imagem real de Tiradentes, muito distante daquela estilizada como, belo ou na condiçao de "Cristo" pela historiografia oficial |
Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, foi um homem do povo,
pobre, sem eira-nem-beira, considerado muito feio, alto e magro, mas que
acreditava piamente nos seus sonhos de emancipação social. Sofrera na pele
todos os preconceitos da elite por sua condição social, sua classe. O desprezo
era tal que Claudio Manoel da Costa o considerava “um idiota”. O ouro havia
criado uma espécie de plutocracia nas minas gerais, a qual com a queda do
governo pombalino que a favorecia começa a se revoltar com o novo regime de
austeridade implantado pela Coroa em 1783, por intermédio do governador Cunha
Menezes, cujo único mérito fora unir ódio de toda sociedade contra sua
administração corrupta e decrépita. Foi responsável pela destituição de
Tiradentes do cargo de alferes com o fito de colocar apadrinhados seus. Não
demorou muito, o asqueroso governador foi substituído pelo terrível Visconde de
Barbacena (1788) na condição de “moralizador” do establishment e depositário de
um enrijecimento da “Derrama”, acirrando ainda mais os ânimos da rica elite regional.
Posteriormente, ele mesmo decretaria o fim do execrável imposto.
Portugal ignorava a realidade no Brasil. Acreditava que a redução da
produção aurífera deu-se em razão do contrabando, do comércio ilegal e da
contravenção, nunca tiveram a dimensão técnica de que acontecia por causa do
esgotamento do veio de ouro conhecido como de aluvião. Estupidamente, tentava
compensar com o aumento de impostos e um rígido controle do que entrava e saía
das minas. Os sentimentos antilusitanos afloravam nas regiões das minas gerais.
Somente na década de 1790 é que tomaram consciência do que acontecia, tendo
repercussão fundamental sobre o julgamento dos “inconfidentes”.
Mas onde entra o Joaquim Xavier? Toma o barco da História após ser
destituído do posto de alferes. Sua ambição era seguir carreira militar, por
isso ficara indignado com a nova situação que lhe impuseram – por não ter
família, o Exército cumpriria esta função – passando a desempenhar uma vida de
tropeiro, minerador falido e de dentista. Nessas andanças conhece intelectuais
que lhe ensinaram ideais liberais iluministas, os quais resolve difundir pelas
inúmeras regiões que visitava. Ficou bastante conhecido, por essa sua brava índole.
A seu modo, mesmo com muita fantasia, ao menos, fazia propaganda dos ideais de
liberdade sem, no entanto, organizar algum grupo ou elaborar um programa de
ação rebelde, não ultrapassava posições empíricas e de senso comum.
Neste ínterim, seus “parceiros” intelectuais e letrados de toda ordem,
agiam com a proficiência dos irresponsáveis. Falavam de conspiração durante
banquetes regados a bebedeiras, nos bordeis, nos conclaves de ricos endividados
sob a presença de representantes do governo e da Coroa. A vanguarda ativa do
grupo era composta pelo padre Correia e Melo (latifundiário escravocrata),
Alvarenga Peixoto (latifundiário, magistrado que vendia sentenças), outro
padre, o Oliveira Rolim (vigarista, charlatão, agiota, falsário etc. etc.),
Freire de Andrade (o “paspalhão” do grupo) e, claro, Tiradentes (por ter consigo
informações captadas dos mais distantes lugares).
Bandeira criada por Tiradentes, com complemento dos arcadistas |
De acordo com o professor Roberto Lopes (2000): “A expressão
Inconfidência Mineira é utilizada para designar aquele esboço de conspiração
ocorrido em Ouro Preto, entre os fins de 1788 e começos de 1789. No conjunto...
não foi além de reuniões, com variados graus de comprometimento...”2 sem apresentar maiores capacidades de
articulação entre os vários grupos de descontentes. Como pudemos ver, não foi um movimento de letrados, uma “conspiração
dos poetas” tal qual nos ensinam erroneamente na escola. Os arcadistas participaram
muito de soslaio do movimento, muito embora suas ideias o influenciassem significativamente.
Não havia unidade programática num Brasil imenso territorialmente, muitos
defendiam a permanência da escravidão porque vislumbravam tomar as terras da
Coroa e assumirem a condição de terratenentes; não sabiam o que fazer caso
conseguissem derrubar o governo Barbacena. De concreto, foi a proposta de
Tiradentes: a bandeira mineira de um triangulo representando a Santíssima
Trindade... Entretanto, a Derrama3 constituía-se
no aspecto centrípeto do programa dos “conjurados”.
Não obstante, o vasto oceano de ideias pelo qual Joaquim Xavier
singrava seus sonhos era costeado por um território inóspito no qual o meio
cultural-político impossibilitava qualquer postura que tendesse para o campo
revolucionário. Os próprios vícios sociais da época, expresso na corrupção
endêmica fundamentava o antigo sistema colonial não fugiam dos inconfidentes,
apesar de haver historiadores que pleiteiam uma abordagem hagiográfica ao
encarar os personagens nos fatos! Tiradentes, por isso foi o elemento que
concentrava em si o espírito contestatório, porém nada “santo”.
CONDENAR UM POBRE PARA “DESMORALIZAR” TODO O MOVIMENTO: NÃO HÁ POESIA
SOBRE A SOMBRA DO PATÍBULO...
Um fato aparentemente sem importância iria desencadear uma profunda mudança
nos rumos dos “inconfidentes”. Joaquim Silvério dos Reis fora convocado para
prestar contas à Fazenda Real que o acusou de fraude. Amedrontado, como forma
de livrar-se de uma possível prisão começou a delatar o movimento de seus
companheiros. Seu objetivo, o perdão da dívida causada pela Derrama. Detonada a
crise, o Visconde de Barbacena determinou o fim do odiado imposto, como forma
de enfraquecer os “sediciosos” em 23 de março de 1789, e instituiu um cerco
repressivo violento. As prisões aconteciam aos cântaros. Apavorados uns acusavam
os outros e outros acusavam uns... Ou então, como Claudio Manoel da Costa,
foram “suicidados” na prisão, não sem antes delatar seus companheiros de viagem.
O visconde enviou Joaquim Silvério para o Rio de Janeiro, onde estava
Tiradentes, para espioná-lo e informar seus passos aos órgãos repressivos locais.
As tropas do vice-rei chegaram a amigos de Tiradentes, os prenderam graças ao
vergonhoso papel de Joaquim Silvério, que sob severa tortura revelaram onde
estava o perigoso “meliante”. Começou o suplício do Tiradentes a partir do dia
10 de maio de 1789, durante três anos seguidos. Todos os prisioneiros foram
condenados a duras penas: degredo perpétuo, prisão de padres e penas de morte
por enforcamento em praça pública.
Contudo, tratava-se de um espetáculo jurídico (caso fosse hoje seria
midiático-televisivo!). Quando os condenados caminhavam para o patíbulo foi
apresentada uma carta régia (redigida em 1790) que comutava a pena dos
condenados. Durante dois anos fora montada uma farsa, com o objetivo de livrar
de responsabilidade a Coroa das cruéis execuções, além de afirmar o caráter “benevolente”
e “piedoso” da Coroa portuguesa. O único
que teve a pena mantida fora... Joaquim Xavier, o Tiradentes! Assumira a
condição de símbolo para o governo português: um julgamento-espetáculo de um
homem simples e pobre que “liderou” um amplo movimento, a medida certa para a
desmoralização (via preconceito) dos rebeldes inconfidentes. O governo lusitano
transformara-o em chefe para toma-lo como exemplo a quem ousar enfrentar as forças
coloniais.
Praça da Lampadosa (atual Praça Tiradentes no centro do Rio de Janeiro)
enfeitada com flores e adornos, exaltações histéricas de clérigos e políticos à
rainha, tropas nas ruas, no dia 21 de abril de 1792, Tiradentes teve cabelo e
barba raspados como humilhação, fora executado aos 46 anos, na forca sob a
orientação de um ex-escravo, Jerônimo Capitânia. Não há poesia sobre a sombra
do patíbulo, nem com o esquartejamento de seu corpo... Ela só pode existir em
plena liberdade: “os seus tristes Inventores / Já são réus - pois se atreveram
/ a falar em Liberdade / (Que ninguém sabe o que seja), / Liberdade, essa
palavra / Que o sonho humano alimenta / Que não há ninguém que explique / E
ninguém que não entenda”4.
Os inconfidentes deram o passo inicial rumo ao processo emancipatório
em relação a Portugal. Muitos embates vieram após a barbaridade armada contra
Tiradentes. Os conjurados organizaram uma trama frágil, ficando limitada
intenção que nunca vingou, mas abriu caminhos para outros movimentos
anticoloniais futuros espalhados por todo o território brasileiro, um processo
que até hoje não está encerrado a custa de muitos mártires e lutadores sociais
em busca de uma sociedade mais equânime, sem exploração.
NOTAS
1 Consultar Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. In http://portaldainconfidencia.iof.mg.gov.br/leitura/web/v1?p#.
Acesso em 21 de abril de 2018. Inconfidentes por serem considerados
traidores das ordens da Coroa portuguesa. Os “Autos da Devassa” do historiador
e republicano Alexandre José de Melo Morais Filho são os documentos originais
da Devassa, que Melo Morais descobriu largados dentro de um saco verde, no
prédio do Arquivo Nacional.
2 LOPEZ, Luiz Roberto. A inconfidência mineira. Editora da
Universidade. UFRGS. Porto Alegre, 2000.
3 Derrama: imposto extra cobrado sobre o quinto, ou seja, sobre o ouro
encontrado sobre os domínios portugueses.
4 MEIRELES, Cecília. O romanceiro da inconfidência.