sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

NEOFASCISTAS QUEREM EXILAR PAULO FREIRE MAIS UMA VEZ: obscurantismo anti-intelectual no Brasil bolsonarizado


N
a etapa obscurantista que está aberta no Brasil, o que mais se têm ouvido (ninguém escreve ou teoriza) na grande mídia patronal é o verso acerca da “doutrinação marxista” nas escolas públicas, do ensino fundamental (!?!) à Universidade. Fábula sem quaisquer fundamentos, pois seus “articuladores”, Bolsonaro e seus filhos nunca leram uma linha sequer do que elaborara o grande mestre da educação, Paulo Freire. Trata-se precisamente de uma ideologia anticomunista, antissocial, antieducação para o povo que tem como método de difusão, os fakenews. Destilam todo seu ódio descabelado contra algo que não tem capacidade cognitiva de apreender e ter ciência, o método de alfabetização do renomado pedagogo. Ficam no senso comum da “convicção” (sem provas) ideológica. De uma primeira abordagem, veremos que o conjunto programático freireano apresenta encontros dialógicos e desencontros com o marxismo, sutilmente tangenciais por sinal. Na relação simbiótica (não-comensalista) entre Freire e Marx destaca-se o profundo desconforto que ambas as práxis causam nas classes dominantes, a unidade dialógica existente entre os “esfarrapados”, seus educadores e a realidade social.

 UM MÉTODO DE APRENDIZADO POLITIZADO

O trabalho de uma vida inteira de Paulo Freire notabiliza-se por ser muito mais do que um método. Na Pedagogia do Oprimido oferece-nos todo um sistema filosófico de bases científicas, cuja aplicabilidade pode ser efetivada em qualquer nível de conhecimento humano no que se refere ao processo educativo de massas. Da educação infantil à pós-graduação em se tratando de seus aspectos formais. Na não-formal pode ser referência nas ciências da saúde, na assistência social, educação popular, na Cultura etc. Por seu caráter profundamente elaborado e erudito, pode ser claramente encarado como uma teoria do conhecimento, ou em palavras mais simples, configura-se em método de aprender, de conhecer a si e aos outros em seu universo cultural! Teve a clareza de inserir no conceito de educação o analfabetismo não como um problema técnico voltado para os tecnocratas de governos de plantão, mas expresso na condição de grave problema social, produto muitas vezes dessas intervenções de cunho “técnico” dissociado da realidade.

As centenas de referências teóricas presentes em sua obra derivam de sua essência dialogal com todos os ramos do saber humano. Tais influências científicas demonstram que todo ato educativo começa em sua politicidade, a formação de homens e mulheres como instruções em aberto, inconclusas e permanentes. Ou seja, deixa em aberto o processo de aprendizagem e atuação em seu meio, rumo à revolução. Por isso, a educação não pode ser neutra, dado que a ação humana sobre a realidade é uma contínua construção e reconstrução de significados. O princípio da não-neutralidade se dá nos dois polos: na formação crítica do sujeito e na afirmação do opressor. Em relação a este último, Paulo Freire usa o termo “hospedeiro do opressor”, graças à “educação bancária”. Não há possibilidade, nesta perspectiva, da dissociação entre aprendizagem da leitura, da escrita e a politização em seu meio social: os alfabetizandos aprendem a “ler o mundo” e a “escrever a sua história”.

A palavra chave para o aprendizado na visão freireana reside no método da dialogicidade, no quefazer educativo. De acordo com esse princípio, tanto o educador como o educando se formam dentro da perspectiva de troca de conhecimentos. Aqui refuta categoricamente o que chama de “educação bancária”, aquela na qual o educador seria o único depositante do saber, a fonte inercial de conhecimento que pode “depositar” na mente (em branco) do educando (analfabeto).

O aprofundamento dialógico proposto por Paulo Freire não deriva do improviso, do não pensado; ao contrário, trata-se de um método científico essencialmente profissional que abarca etapas de trabalhos bem específicas: a investigação temática da comunidade (pesquisa de cunho sociológico); a tematização (palavras geradoras do universo cultural desta comunidade) e, por fim, a problematização (superação da visão ingênua pela ótica crítica). O continuum nos “círculos de cultura” o aperfeiçoamento deve ser desenvolvido por um grupo de educadores especializados, que podem ser psicólogos, sociólogos, economistas, médicos etc. É, portanto, um trabalho, deste a sua origem, cristalinamente profissional. Para Couto (2017) a alfabetização é “um processo contínuo de aprendizagens e de seu uso social... é sempre uma ação transformadora, e transformar, nesse sentido, é utilizar o aprendido para qualificar as intervenções no cotidiano”.

O reacionarismo em voga
Os irracionalistas de hoje (neofascistas e pastores) acusam Paulo Freire de doutrinador. Contudo, ele sempre se opôs à doutrinação, pois como foi dito acima, sua prédica é permeada pelo diálogo, o saber científico, a sensibilidade, o conhecimento técnico nas intervenções culturais, o saber popular, a diversidade e os direitos humanos. Gadotti (2018: 9) resume assim o conteúdo do método freireano: “...politicidade da educação, o reconhecimento da legitimidade do saber popular, a prática da liberdade como precondição para a vida democrática, a educação como produção e não meramente como transmissão de conhecimentos, uma ciência aberta às necessidades populares, a harmonização entre o formal e não-formal, a recusa ao pensamento fatalista neoliberal e uma pedagogia comprometida com a cidadania ativa.”

SERIA PAULO FREIRE MARXISTA E COMUNISTA?

Marx como grande referência de Paulo Freire
O “start” epistemológico de Paulo Freire concentra-se no aspecto bipolar entre humanização/desumanização. Encontrou em Marx uma fonte inspiradora bastante sólida, certamente o “Big-Bang” de seu pensamento: “A teoria materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produtos de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade... A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendia como praxis transformadora” (MARX, 1845, grifos meus).

Converge, não obstante, dialogicamente com o pensamento de Marx, a de que o Ser Humano é inconcluso, o sujeito em si, solto em seu meio. Somente pode adquirir consciência para si quando tomar consciência de sua inconlusão, a consciência de classe perante a injustiça, exploração e opressão como fatores de sua “humanidade roubada” (FREIRE 2006: 32) ou “ser de menos”. A luta é travada nestes campos. Porém, a partir daqui os há uma separação ontológica e política: “Esta luta somente tem sentido quando os oprimidos ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de cria-la, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores” (Idem: 33, grifo meu) dentro de seu próprio espaço e tempo.

Claro, tal elaboração é fruto da época mesma em que foi escrita, no calor dos acontecimentos da década de 60 do século passado, cujas ideias emancipatórias brotavam às miríades. A Revolução cubana, a revolução cultural maoísta, a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, a guerra fria, os movimentos de contracultura (em oposição à Guerra no Vietnã), a crise do stalinismo e tantos outros mais. Em mente Freire sempre teve que a violência parte dos opressores, através daquilo que ele definiu como um longo processo de “desamor” como fruto da desumanização e coisificação do Homem, “...os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão” (FREIRE 2006: 47-8). Neste sentido, completa afirmando que “...os freios que antigos oprimidos devem impor aos antigos opressores para que não voltem a oprimir não são opressão daqueles a estes” (idem: 49, grifo meu), concepção que, na verdade, rompe com o marxismo, uma vez que este prevê a necessidade da ditadura do proletariado (a maioria oprimida) sobre a burguesia (minoria opressora) para garantir democraticamente a exequibilidade de seu poder. Posto que a classe dominante não irá abrir mão pacificamente de suas propriedades, de seu capital, vai reagir com extrema violência (guerra civil).

Adorno e Horkheimer, a Escola de Frankfurt
Até pode parecer latu sensu certa ingenuidade do grande mestre, mas é que ele trabalha com categorias sócio-políticas diferentes. Um vale-se do âmbito cultural de tipo gramsciano-cristão segundo o qual o Homem pode ser bom em algum sentido (esperança, crença no “Messias”, por exemplo), além das fortes influências da Escola de Frankfurt (Habermas, Adorno, Marcuse, Erich Fromm) que criara a Teoria Crítica; o outro a concepção de classe social, cujos interesses são irreconciliáveis com seus opressores (Marx, Lenin, Trotsky). A primeira forma acredita que os opressores “não podem perceber, na situação opressora em que estão, como usufrutuários, que, se ter é condição para ser... Não podem perceber que, na busca egoísta do ter como classe que tem, se afogam na posse e já não são. Já não podem ser (FREIRE 2006: 51, grifos do autor).

Fica a pergunta, o opressor não se percebe como classe? É evidente que a burguesia tem consciência de classe, eis o porque do distanciamento epistemológico freireano em relação ao marxismo que reclama a participação do partido revolucionário que irá depor a burguesia pela força armada da classe operária! “A insurreição é uma arte e, como toda a arte, ela tem as suas leis... Na conquista do poder, ao proletariado não lhe basta uma insurreição das forças elementares. É preciso uma organização correspondente, falta-lhe um plano, precisa de uma conspiração...” (TROTSKY 1930), de militantes que atuem em suas bases, ou células operárias. Freire recusa o “dirigismo” (2006: 63).

O arcabouço teórico freireano não considera a necessidade da repressão democrática sobre o opressor de outrora, para ele “não é uma troca de lugar”, nem a libertação pode ser feita por “outros”, tampouco por via de propaganda (programa partidário) a não ser através da condição dialogal (FREIRE: 60-1).

Enfim, ontologicamente falando, o sujeito entre ambas as concepções são os mesmos, mas em seu conteúdo epistemológico/metodológico se separam diametralmente quando trata da ação prática contra a classe dominante. O marxismo tem como ponto de partida a luta de classes, o espírito guerreiro, a conspiratividade e o embate polêmico de ideias vivas. Freire acredita que “os homens se educam em comunhão” (2006: 79). Mais adiante, na página 91, enfatiza que não é uma discussão guerreira, baseada na polêmica entre os vários sujeitos que não buscam a verdade, mas a imposição de um sobre o outro. Necessário enfatizar que marxismo e as ideias de Freire são campos distintos com o qual este trava um diálogo! “A Pedagogia do oprimido representa um avanço em sua elaboração teórica onde coexistem categorias de origem cristã, como a ideia de diálogo e influências marxistas, como a noção de classe social” (GADOTTI, 2018, grifo meu).

BODE EXPIATÓRIO DE CONSERVADORES E REACIONÁRIOS, PASTORES E GENERAIS. ACABAR COM O QUE NÃO EXISTE!!!

Desde 2013, quando se inaugurou a sanha conservadora, os paneleiros-patos que vociferavam “menos Paulo Freire” contra a presidenta Dilma e o ulterior golpe que a depôs, foi aberta a caixa de pandora anticomunista. Que numa avaliação fina, constata-se que esteve muito distante de uma mobilização revolucionária como apontam a maioria das ufanistas correntes de esquerda no Brasil.

Paneleiros e patos de amarelo e o ódio de
classe contra Paulo Freire e a
educação libertadora
Na sua recente cruzada irracionalista Bolsonaro toma como principal problema da educação brasileira escolas públicas impregnadas com “ensinamentos marxistas”, os quais atrapalham o desenvolvimento dos alunos e, por causa disso “vai entrar com um lança-chamas no MEC e tirar Paulo Freire lá de dentro” (FOLHA, 25/10/2018). Como se esse fosse o real problema da educação no Brasil e não a precariedade material das escolas, a falta de verbas, salários aviltados dos educadores, a imensa corrupção na extensa teia organizativa do sistema educacional, o roubo da merenda escolar. O rol é quase infinito... Contudo, o problema é a doutrinação marxista! Bolsonaro empossou vários adeptos do astrólogo Olavo de Carvalho no MEC1, sem que tenham qualquer experiência em gestão escolar em nível nacional. Para o Inep, órgão responsável pelo Enem, assumiu um sujeito formado em EAD no Youtube por Olavo! Há inclusive um militar na pasta...

Para piorar o que já é ruim, aparecem os adeptos e fanáticos religiosos da “escola sem partido”, segundo o projeto os pais devem ser respeitados e que “seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, cujos “valores de ordem familiar precedam sobre a educação escolar...” (FOLHA, 08/06/2018). Ou seja, na família a criança deve ser um sujeito; na escola outro: a escola ensina, a família educa, eis o chavão preconceituoso oriundo do senso comum (fakenews) presentes nas redes sociais e mídia corporativa, no intuito de colocar uma mordaça nos professores, destruir a liberdade de cátedra garantida até mesmo pela Constituição de 1988. Tais ideias não têm absolutamente nenhum fundamento pedagógico, nenhuma base científica, apenas preconceito e ódio de classe.

É de conhecimento da maioria dos educadores que o sistema educacional brasileiro carece de influências freireanas, tal como nos diz a professora Andrea Gouvea em entrevista à Folha (6/01/2019): “Há um desconhecimento e preconceitos [por parte de quem o ataca], o que impede um debate. Nem há predominância de Paulo Freire em nenhuma diretriz educacional”. Portanto, a ideia de expurgar Paulo Freire das escolas já por si só uma aberração, na verdade um recurso diversionista para quem tem como único recurso privatizar o sistema público de ensino. A “escola sem partido” revela-se uma fraude para substituir a recém-criada Base Nacional Comum Curricular da educação infantil e do ensino fundamental, que nem mesmo cita Paulo Freire. Expurgar algo que não existe? O professor Júlio Emílio Diniz-Pereira, da Universidade Federal de Minas Gerais, enfatiza e deixa bem claro que “A minha experiência empírica é de uma grande ausência de Paulo Freire nas licenciaturas e nos cursos de formação de professores” (Idem).

Parafraseando o grande mestre, a única doutrina existente nos dias atuais é aquela exposta pela “educação bancária” que impõe conteúdos sem que haja uma reflexão por parte do educando, encarado como mera caixa para depositar conteúdos pré-concebidos em gabinetes de tecnocratas. O método dialógico-reflexivo fez com que após o golpe militar de 1964 Paulo Freire fosse expulso do país. Bolsonaro, caudatário das ideias retrógradas dos militares golpistas pensa em exilar Paulo Freire pela segunda vez, agora em morte de seu corpo, mas presente em cognoscibilidade, coração e amor (versus as veias do “desamor” abertas pelos obscurantistas) nas mentes pedagógicas do nosso país.

É preciso compreender Paulo Freire a partir do que ele mesmo definiu como “tridimensionalidade do tempo” e na interdisciplinaridade do diálogo como um “ser conectivo”2 (DOCUMENTÁRIO 2006). Os animais vivem e existem num infinito presente, enquanto os seres humanos existem e são históricos em seu passado, presente e futuro refletindo in continuum sua criatividade imanente no Universo de seu conhecimento, imersos profundamente nas três dimensões de seu espaço-tempo na preparação de um novo Ser, educado para uma sociedade de novo tipo.


Notas e referência bibliográficas:                                        

1 O Ministério da Educação de Bolsonaro:
Ministro - Ricardo Vélez Rodriguez
Chefe de Gabinete - Tiago Tondinelli
Secretário-executivo - Luiz Antonio Tozi
Secretária de Educação - Básica Tania Leme de Almeida
Secretário de Alfabetização - Carlos Francisco de Paula Nadalin
Secretário de Educação Superior - Mauro Luiz Rabelo
Secretário de Educação Profissional e Tecnológica - Alexandro Ferreira de Souza
Secretário de Regulação e Supervisão e Educação Superior - Marco Antonio Barroso Faria
Secretário de Modalidades Especializadas de Educação Bernardo - Goytacazes de Araújo
Presidente da Capes - Anderson Ribeiro Correia
Presidente do FNDE - Carlos Alberto Decotelli da Silva
Presidente do Inep - Marcos Vinícius Rodrigues
Presidente EBSERH - General Oswaldo de Jesus Ferreira

https://api.tvescola.org.br/tve/video/paulofreirecontemporaneo . 2006. Imagens raras e a explanação do método por Paulo Freire, seguidores e alunos. 19:26 a 19:53 min.

BRANDÃO, Lucas. A escola de Frankfurt e a Teoria Crítica. In https://www.comunidadeculturaearte.com/a-escola-de-frankfurt-e-a-teoria-critica/ . Acesso em 03 de janeiro de 2019.

COUTO, Sonia. 20 anos sem Paulo Freire: uma memória atual e necessária. 02 de maio de 2017. In http://www.cartaeducacao.com.br/artigo/20-anos-sem-paulo-freire-uma-memoria-atual-e-necessaria/ Acesso em 03 de janeiro de 2019.

Documentário Paulo Freire contemporâneo https://api.tvescola.org.br/tve/video/paulofreirecontemporaneo . Imagens raras e a explanação do método por Paulo Freire, seguidores e alunos.



FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 44ª edição. 2006.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia do oprimido como pedagogia da autonomia e da esperança in Revista UniFreire, Ano 6, ed. 6, dez. 2028. https://www.paulofreire.org/download/pdf/Revista_Unifreire_28_12_2018.pdf Acesso em 07 de janeiro de 2019.

MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. 1845 in http://www.unioeste.br/projetos/histedopr/bibliografia/Teses_Feuerbach.pdf Acesso em 06 de janeiro de 2019.

TROTSKY, Leon. A arte da insurreição in História da Revolução Russa. 1930 in https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/cap43.htm Acesso em 04 de janeiro de 2019.