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uitas perguntas têm instigado
cientistas sociais e filósofos a se questionarem ao longo dos tempos acerca de
qual a nossa relação com a realidade que nos permeia. O que, concretamente, ela
é? Existe o fato objetivo? É possível determinar como realidade concreta o
intricado mundo das relações sociais em cada fato posto? Na atualidade, qual o
papel da informação, nesse sentido, como ela nos coloca dentro, perante (ou
fora) dos acontecimentos e como descrevê-los da forma mais correta possível
para que se atinja ou se encontre a Verdade lógica numa conjuntura politica e
social através da qual o sujeito dotado de irracionalidade está cada vez mais
individualizado, quase que submerso em sua solidão social, cuja consequência
hoje presenciamos em fenômenos de ascensão da extrema-direita em todo o mundo
(trumpismo e bolsonarismo, por exemplo). Para chegar a um denominador comum,
trabalharei com duas hipóteses, uma nietzschiana e outra marxista,
aparentemente opostas, mas que têm princípios cognitivo-epistemológicos
bastante interessantes. O primeiro expõe; o segundo explica!
Friederich Nietzsche e sua metáfora da realidade |
NIETZSCHE versus MARX, OPOSTOS QUE SE COMPLETAM
Algumas respostas
elencadas pelas inquietações acima expostas Nietzsche pode nos dar uma
dimensão, partindo de seu extenso manancial sistêmico de ideias, do qual
podemos extrair em poucas palavras, “não há fatos, apenas versões” (NIETZSCHE,
1887). Sob a ótica da moral, avalia que os Homens “...estão profundamente imersos
em ilusões e imagens de sonho, seu olho resvala às tontas, pela superfície
das coisas e vê ‘formas’, sua sensação não conduz em parte alguma
à realidade, mas contenta-se em receber estímulos e como que dedilha um teclado
às costas das coisas” (NIETZSCHE, 32, 1987 – grifos meus).
Assim, para o filósofo,
a captação do real é uma ilusão e, portanto, superficial
adquirida por sensação (sentido), de acordo com a qual o sujeito contenta-se
e assimila-a como bem entende, logo para este sujeito contente trata-se de Verdade. Em se tratando de um longo
processo de alienação e de realçar postura acrítica, tal pode ilustrar muito
bem o período pela qual passamos no Brasil e boa parte do planeta dominados
pelo neofascismo (Polônia, Áustria, Hungria, Filipinas, EUA, Brasil, Inglaterra
etc.). Nietzsche, contudo, está muito mais para a metafísica do que para o
materialismo, ou seja, a sua teoria do conhecimento é essencialmente
contemplativa, todavia pode exemplificar o que passa com o alienado. Não
obstante, suas metáforas servem para definir com propriedade o significado de
alienação, que conhece a existência da matéria, mas não a distingue da
consciência e das sinapses neurais do cérebro humano, isto é, a forma como
percebemos e analisamos as coisas. Em síntese, Nietzsche tem seu enfoque
filosófico convertido em “verdade metafórica”, cuja principal evidência
cognitiva é a indiferença que o sujeito
possui de seu não-saber, pois é muito mais confortável para si, para seu
inconsciente. Desconhecer pode ser um dos primeiros postulados que levam ao
misticismo e às crenças, a não-verdade, à mentira.
Karl Marx: o que determina o Ser é sua praxis |
Anos antes de Nietzsche,
Marx trabalhara com o conceito de Verdade, aquele que faz a correspondência
entre a representação consciente do objeto e o objeto em si, a partir da
observação do mesmo e vai além: “A questão de saber se ao pensamento humano
pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática.
É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e
o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou
não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica”
(MARX, 1969). Simplificando este pensamento, só pode conhecer quem age e não contempla! Diferente de Nietzsche, Marx
afirma que há sim verdade objetiva, uma vez que ela deve ser posta à prova dos
acontecimentos, o que dela incide sobre o Homem e a sociedade. A realidade, ou
a verdade, não é uma mera metáfora arbitrária desprovida de razão e lógica. É o
Homem em sua totalidade, a experiência histórica, pessoal/coletiva que dará luz
ao farol de sua consciência. Engels iria dar sequencia a este pensamento em
um artigo de 1886: “...o que Feuerbach acrescenta de materialista, tem mais de
engenhoso do que profundo. A refutação mais contundente destas extravagâncias,
como de todas as demais extravagâncias filosóficas, é a prática, ou seja, o
experimento e a indústria” (2019).
A FENOMENOLOGIA “PÓS-VERDADE”
É UMA REALIDADE OBJETIVA?
Mas o que é
“pós-verdade”? É o que “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos
objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à
emoção e a crenças pessoais”, segundo o Oxford
Dictionaries. Quer dizer, na atualidade tem mais peso as opiniões e não os
argumentos fundamentados em bases científicas, há o predomínio da crença
(religiosa ou até objetiva) sobre a razão. Não por acaso concepções
criacionistas, terraplanistas e o neopentecostanismo estão ganhando evidencia e
destaque “intelectual”, ou que o nazismo era de esquerda, vacina causa demência
e outras aberrações vêm ganhando terreno dentro do senso comum das massas e de
“autoridades” governamentais enterradas em sua ignorância querem impor censura
a cientistas que divulgam suas pesquisas (Bolsonaro segue à risca o que Trump
faz e determina a seus subalternos).
Mídia corporativa e a miséria humana como pano de fundo |
O obscurantismo veio ascendendo
na cultura mundial principalmente após os ataques às Torres Gêmeas em 2001, em
Nova Iorque, e a ulterior perseguição ideológica a quem pensasse diferente do american way life: a guerra
antiterrorismo desencadeada por todo o planeta por parte de G. Bush filho.
Acirraram-se ainda mais o proselitismo cristão, do homem branco, ocidental ao
estourar a grande crise econômica de 2008 que consumiu várias potencias capitalistas,
inclusive a americana, desembocando em profundas crises políticas em inúmeras
partes do mundo. A guerra de informações falsas estava declarada (Iraque
possuía armas de destruição de massas)! A espionagem ganhou força, a procura de
pessoas engajadas em questões sociais para prendê-las ou amedronta-las, amplia-se
a coleta de dados pessoais para, conforme seus desejos nas redes sociais,
melhor manipulá-las com logaritmos digitais (os Big Data) e assim convencê-las
de uma suposta necessidade ou verdade criada. Aqui a ideia clássica de verdade,
que nega fatos objetivos por conta de crenças políticas individualizadas
paradoxalmente dentro de uma coletividade (o bolsonarismo exemplifica com bastante
clareza este fenômeno).
A individualização da
sociedade remete-nos ao pensamento nietzschiano: a indiferença do não-saber
traz-nos como triunfo o predomínio da crença (não necessariamente religiosa).
Os fatos objetivos têm menor peso que a crença pessoal, isto é, o emocional
sucede sobremaneira o racional, tendo-se como substrato diversos apelos à fé
(política ou religiosa). Neste sentido, Copérnico foi queimado na fogueira pela
Inquisição e Galileu teve que renunciar a suas ideias. Há décadas o establishment vem plantando as sementes ideológicas
nas cabeças das pessoas incutindo à exaustão a ideia de que se preocupar com o
coletivo é coisa de comunista. Os meios de comunicação (manipulação) de massas
e as redes sociais são a demonstração das tendências mais reacionárias que vive
a Humanidade. Muitos dizem a “verdade”, então só pode ser verdade mesmo!
Boris Yelstsin dirigiu o golpe militar que destruiu a URSS |
Por
outro lado, pode-se falar em crença na Verdade? Este é o mesmo lado da moeda
dos ditos pós-verdadeiriistas. Como práxis, definida por Marx, a Verdade, na
ciência jamais pode ter uma via de mão única, caso contrário seria a expressão
mais acabada do individualismo subjetivista, marcado por uma profunda (e
lamentável) desumanização do Ser, uma vez que implica não a cooperação entre os
vários indivíduos, mas a competição desanuviada, no campo da obscuridade
anti-intelectual. O
resultado do credo em verdades – que se converte em mentira – transforma o
sujeito (pessoas) em sua recusa a aprender, em absolutização da teimosia
sináptica. Claro, para o marxismo, o pós-verdade é sim uma realidade, pois a
mentira é uma elaboração (des)humanizadora.
O REAL CONCRETO COMO
PANO DE FUNDO E INDIVIDUALIZAÇÃO
Não se pode negar, os costumes
após 2001, 2008 e 2016 (eleição de Trump) mudaram tanto politica como
culturalmente de uma forma bastante significativa com o advento e a
massificação da internet ao lado das crises econômicas e politicas.
Nos anos 80 o filme Blade Runner (SCOTT, 2019) foi o emblema
estético do pós-modernismo. Nos dias mais atuais toma-lhe este lugar a trilogia
de Matrix, um mundo de sonhos criado
por computador que simula uma realidade de uma humanidade adormecida e sem
consciência do que se passa a seu redor. Nele, o personagem Cypher, outrora
batalhador e defensor das liberdades, profetiza no seu novo mundo: “a
ignorância é uma benção” (WACHOWSKI, 2019), pois não quer acordar para
realidade (novamente Nietzsche!). O que importa é estar bem, sem sofrer, mesmo
que isto acarrete trair amigos, corromper-se. Verdadeira sinopse dos novos
tempos!
A
individualização (descoletivização desumanizadora) toma a realidade como mero
pano de fundo de suas vidas, toda ela imersa inapelavelmente em amores,
trabalhos e amizades. Problemas alheios não lhes convêm, nem interessa.
Conflitos, guerras, pobreza são ilustrações apresentadas pela mídia apenas para
ser consumida, não entendida.
A dura realidade torna-se uma alegoria distante, enquanto isto, a vida segue...
Não questionar, não refletir seguem uma tendência cultural e política em face
da contemporaneidade dos fatos, miríades de informações são jogadas quase que
ao infinito nas mentes das pessoas. A tecnologia tornou o mundo pequeno em
termos de comunicação, cujo contraponto manifesta-se através da desinformação e
da ignorância como uma natureza paradoxal.
Com o culto ao não-saber, guerras passam ao largo da população |
Tudo se perde, afunda
neste pântano relativista, lugar em que não há uma verdade objetiva. Ocupam
este vazio as fake news, as deep fake (inteligência artificial que manipula
filmes e vozes), o pseudonacionalismo (neofascismo), o populismo de
extrema-direita como resultado do não-saber nietzschiano. A visão formalista e individualista/pragmática aliada ao materialismo
consumista que cresceu vertiginosamente nas últimas décadas conduziu a um
crescente processo de desumanização dos indivíduos, à exacerbação de
sentimentos e atos violentos contra setores vulneráveis da sociedade. Os
interesses pessoais acima dos fatos sociais, eis o real significado do
pós-verdade, num contexto em que a mentira nasce de uma forma organizada e
sistemática nas estratégias midiáticas de manipulação em massa em benefício de
determinado governo.
Ao perderem-se as noções
do real, cai-se em profundo cinismo niilista: a recusa em acreditar na verdade
de qualquer coisa. Por exemplo, no Brasil equivale a dizer que os políticos são
todos corruptos, desconsiderando as enormes diferenças entre eles. Tudo é
farinha do mesmo saco, dizem como indústria do niilismo. A pós-verdade é tomada
aqui como não-verdade. Um caminho para desatolar do pântano foi aberto por
Marx: “A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que
seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis
humana e no compreender desta práxis” (Thesen 8, grifos meus). O que
fazemos e como fazemos é o que pode nos definir como seres humanos
(humanizados) e tornar possível compreender o que acontece ao nosso redor.
Referências
bibliográficas e cinematográficas
https://acasadevidro.com/2018/12/17/a-era-da-pos-verdade-hi-tech-a-ascensao-do-poder-politico-da-mentira-organizada-e-viralizada/. Acesso em 1 de agosto/2019.
https://cinegnose.blogspot.com/2019/07/como-as-pos-verdades-e-deepfakes.html. Acesso em 31 de julho/2019.
https://www.conjur.com.br/2018-ago-26/josie-barros-pos-verdade-subversao-principio-democratico. Acesso em 1 de agosto/2019.
ENGELS, Friederich. Ludwig
Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. https://www.marxists.org/portugues/marx/1886/mes/fim.htm. Acesso em 3 de agosto/2019).
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/576912-a-pos-verdade-e-seu-tempo-politico. Acesso em 30
de julho/2019.
MARX, Karl. Thesen über Feuerbach, in Marx-Engels Werke, Band 3, Seite
5ff. Dietz Verlag Berlin,
1969 http://www.mlwerke.de/me/me03/me03_005.htm acesso em 3 de agosto/2019.
NIETZSCHE, Friederich.
Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. 1873, in Os Pensadores, vol 1,
1987.
___________________. Fragmento
póstumo 7 [60], fim 1886-primavera 1887.
SCOTT, Ridley. Blade
Runner, o caçador de androides. https://www.netflix.com/br/title/70082907, acesso em 3 de agosto/2019.
https://www.theguardian.com/books/2017/may/19/post-truth-matthew-dancona-evan-davis-reiews, acesso em 1 de agosto/2019.
WACHOWSKI, Lana, Lilly Wachowski. MATRIX. https://www.youtube.com/watch?v=o6cjiZs2EvU, acesso em 3 de agosto/2019.