N
|
este momento de severa pandemia e ataques às comunidades
negras pela bazófia bolsonarizada, devemos comemorar o 13 de Maio? Isto quando os
filofascistas tem em seus representantes os nomes certos para destruir o que
resta das populações quilombolas no país, particularmente no Maranhão: famílias
residentes há mais de 300 anos na região de Alcântara estão para serem expulsas
de suas terras para dar lugar à base militar norte-americana (1). Na
atual conjuntura, o governo federal implementa a destruição total das políticas
públicas, quaisquer que possam proteger estas comunidades, pondo em evidência o
seu caráter sobremaneira racista. O asqueroso terraplanista Sérgio Nascimento
de Camargo, Presidente da Fundação Palmares, afirmou que a “escravidão foi benéfica”
e que o dia da consciência negra “precisa ser combatido incansavelmente até que
perca a pouca relevância que tem” (2) e tantas outras aberrações são a marca
indelével de quem assenta-se no Planalto. As campanhas institucionais cada vez
mais se permeiam por programas de forte conteúdo nazista e dão o tom
lumpen-burguês do atual governo.
O Brasil foi uma das
primeiras nações do mundo a instituir o escravismo e, como produto de sua
continuidade sistêmica, a última a aboli-la! De toda a existência brasileira,
em seus 520 anos, 350 foram sob o domínio escravocrata português. Apenas
170 anos vigoraram juridicamente sem o povo escravizado em razão de sua raça e
fonte de um modo de produção que o legitimava a partir de sua superestrutura
ideológica. Neste devir histórico, qual o significado da Abolição da
escravatura, a Lei Áurea de 1888?
Três séculos de brutalidades no Brasil colonial |
Devemos ter um ponto de partida para compreendermos esta
questão. Trata-se da “conspiração do silêncio” levantada pelo professor Mario
Maestri: “...a operação recebe o apoio do movimento negro brasileiro que, ao
contrário, deveria desdobrar-se na celebração do 13 de Maio e na discussão de
seu significado histórico, destruindo interpretações apologéticas a ele” (3). É
preciso desbravar mais um mito criado, no sentido de que a Abolição pelas mãos
da monarquia fora algo passivo/pacífico, produto da “bondade da princesa” e
que, portanto levou à edificação de uma sociedade desigual. Rompamos com este
pensamento euclidiano e a visão da sociedade como uma reta, posto que a verdade
nos conduz à memória de gênese da nossa formação histórica ainda ladeada por um
retrógrado racismo estrutural.
Almeida ressalta que “...pensar o racismo como parte da
estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas
racistas e não é um álibi para racistas. Pelo contrário: entender que o racismo
é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna
ainda mais responsável pelo combate ao racismo e aos racistas” (4).
O BRANCO COMO CABEÇA DE PONTE? DESMEMORIZAÇÃO DE INTENSA
PUGNA!
José de Alencar, ferrenho anti-abolicionista |
Historiadores e sociólogos, especialmente nos anos 60 do
século passado lançaram névoa acerca do significado do 13 de Maio. Florestan
Fernandez, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso expuseram suas teses cujo
protagonismo abolicionista concentrava-se nos brancos, aos cativos coube o
papel sem grandes destaques.
Na década seguinte, em seus estertores, o movimento negro
adapta esta concepção para formar novas teses, objetivando desqualificar o ato
governamental da Abolição, haja vista que fora conduzida sem indenizações,
tinha como meta criar mão de obra barata, as condições materiais de vida
pioraram (5).
O amálgama cepalino freyreano estava pronto, formando o todo negacionista,
apesar das boas intenções do movimento negro!
Assim, postulando no campo crítico pelo pesquisador, o
movimento negro se opondo à legitimidade da princesa Isabel e dos brancos,
propõe descartar o 13 de Maio e adotar o 20 de Novembro como data referência da
consciência negra, data na qual o maior líder do Quilombo dos Palmares fora
assassinado. Na verdade, tal concepção encerra um equívoco epistemológico, pois
passa a desconsiderar o longo passado de enfrentamentos e lutas até o “ato de
bondade da princesa”! Milhares de formas de resistências são jogadas no limbo
do esquecimento...
APENAS UM PROBLEMA METODOLÓGICO?
Veremos que não se
trata de erro de interpretação, mas uma fina visão de mundo, aquela que
açambarca as ideias das classes proprietárias e reticentes quanto aos feitos
das massas escravizadas. Parece uma análise dura, sectária, mas é a
quintessência do esquecimento do processo abolicionista de um dos
acontecimentos mais importantes da história do Brasil!
Por muitos anos o fato histórico fora comemorado
acriticamente pelas comunidades negras. Nas últimas décadas passou a vingar o
proselitismo anti-abolição, o qual acabaria na perda de um importante memorial
das massas oprimidas, principalmente a afro-descendente.
Numa outra situação, não
podemos ignorar a importância que a Abolição causou na consciência e na vida
dos cativos. Era o fim dos horrores macabros de um povo escravizado (algo em
torno de um milhão). À época fora celebrada como uma vitória do povo negro!
Opor-se a esta lição de vida significa alienar-se plenipotencialmente de uma
extensa experiência e memória popular, tal como advoga a classe dominante e sua
ideologia, ainda mais o que hoje propugna o filofascista governo federal.
O 13 de Maio como segmento do Quilombo de Palmares! |
É preciso deixar cristalino que Palmares não está em
oposição ao 13 de Maio, por mais que seu povo desse sua vida por ele,
considerando que “...a epopeia palmarina jamais se propôs... a destruição da
instituição servil” (6). A heroica Palmares, com milhares de vítimas
dos canhões portugueses, fora derrotada; a Abolição, por outro lado, consumou
uma vitória, igualmente à custa da resistência histórica do povo cativo em meio
a um modo de produção sui generis,
diferente dos demais existentes na América espanhola ou dos Estados Unidos, o
chamado “escravismo colonial” (7).
A PERMANÊNCIA DA MONARQUIA FOI A DURAÇÃO DO ESCRAVISMO
COLONIAL
A agonia do regime monárquico fora intensificada pela
falência do modo de produção, paradoxalmente medieval na colônia (Brasil) e
pré-capitalista na metrópole (Portugal). Fuga de cativos, execução de feitores
e senhores, exigência do fim do tráfico negreiro por parte da Inglaterra (em 1845
- Slave Trade Supression Act),
profundo atraso das forças produtivas (plantations), tudo solapava as bases
coloniais do “Império” brasileiro. O abolicionismo desenvolvia-se rapidamente
por um Brasil cada vez mais pobre. D. Pedro II tentou até o fim de seu
desespero colonial manter o instituto escravista, uma vez que suas bases de
apoio político estavam à beira de falir (a oligarquia cafeeira e mineira).
Contudo, a derrocada da monarquia não teve como causa única
o fator econômico: a questão subjetiva (desejo e reivindicação de liberdade)
deve ser considerada numa análise materialista, porque senão cairíamos numa
simplificação não-histórica. A luta de
classes, embora “em si”, era feroz e repercutia intensamente no mundo colonial
escravista. O movimento abolicionista, de certa forma, era a expressão
distópica das resistências dos cativos. Tomou para si a função programática que
visava unir os cativos, os caboclos, os posseiros, os sem terra num continuum
crescente.
Manifestação popular diante da Câmara Municipal do Rio de Janeiro |
O abolicionismo não foi exclusivamente acadêmico-literário,
pois desde sua origem sempre esteve sob a contenda do establishment, dadas as
sólidas raízes com os cativos e pobres da sociedade agropastoril brasileira:
sujeito à violência policial, prisões, assassinatos, desmandos cruentos. Contudo,
em 1889, este fluxo fora drasticamente contido com o golpe militar que
instituiu a “República” e perseguiu os abolicionistas, estancando o caráter
revolucionário dos mesmos. Neste sentido, podemos afirmar que a Proclamação da
República, um ano após a Abolição, cumpriu um papel objetivamente
contrarrevolucionário.
Assim Maestri resume a questão: “Desconhecer o sentido
revolucionário da Abolição é olvidar a essência escravista de dois terços de
passado brasileiro e o caráter singular da gênese do Brasil contemporâneo,
através da destruição do escravismo. Tal desconhecimento ignora a contradição
essencial que regeu por mais de trezentos anos o passado brasileiro -
escravizadores contra escravizados” [2005]. O negacionismo é uma revisão histórica que distorce a realidade
pretérita. Os abolicionista não foram formados apenas pela classe média em
ascensão à época: havia uma forte base popular que congregou negros
escravizados, negros livres, e até mesmo brancos desde os anos 1880. Os abolicionistas
reuniam-se nas chamadas “ruas e bairros livres”, espécies de “quilombos”
urbanos.
Ferrari nos dá uma perspectiva alentadora: “Um robusto
movimento abolicionista, com sua contrapartida escravista, também teve papel
histórico central durante os 20 anos (1868-1888) que precederam a Lei Áurea” (8).Graças
a esta verve, a abolição fora uma conquista, não uma dádiva, nem resultado
mecânico de uma exaustão econômica, um marco da incipiente classe operária
brasileira. Enterneceu até mesmo o romancista Raul Pompeia: “a ideia de
insurreição indica que a natureza humana vive. A maior tristeza dos
abolicionistas é que essas violências não sejam frequentes e a conflagração não
seja geral.” (9).
QUE HISTÓRIA QUEREMOS FORMULAR?
Necessário compreender que a Abolição mexia
consideravelmente na ordem escravista imposta, nas hierarquias sociais e na
cultura até então vigentes, tanto é verdade que não fora um processo consensual
entre a classe dominante. Alonso capta muito bem este sentimento ao considerar
que “O Império era fundado na escravidão, não só na economia. A hierarquia
social era baseada na posse de bens que davam poder e prestígio, e os bens mais
importantes eram os escravos. A escravidão sustentava também o sistema
partidário, porque o eleitorado era definido com base na renda.” (10). A
perda deste domínio apavorava a classe proprietária e seu porta voz
antiabolicionista, o romancista Jose de Alencar se queixava em 1867: “Um sopro
bastará para […] lançar o Império sobre um vulcão” [Idem].
A consciência negra na perspectiva da luta de classes |
“A Revolução Abolicionista permitiu a gênese de um Estado
liberal antidemocrático - a República Velha (1889-1930) - , apoiado agora na
exploração do trabalho livre, onde o produtor direto vendia sua força de
trabalho e não era mais propriedade de seu explorador” (11). Conrad (12) chegou à conclusão que os
abolicionistas almejavam não exclusivamente o fim da escravidão, mas defendiam
um projeto de modernização do país: reforma eleitoral, reforma educacional e
distribuição de terras. Óbvio, programa diametralmente oposto ao que pregava a
rústica oligarquia brasileira. Entretanto, esta condição permaneceu dentro do
campo do racismo estrutural, o qual perdura até os tempos atuais: ex-cativos
sofrem discriminação racial, ocupam terras devolutas, vão trabalhar nas
fazendas sob cota miserável, muitos tornam-se indigentes, outros vão atuar como
estivadores em portos.
O impacto na subjetividade dos ex-cativos foi enorme, tanto
que Domingues (13)
(14)destaca
que as comemorações do Dia 13 de Maio eram quase que um ritual sagrado nas
comunidades: Clube 13 de Maio dos Homens Pretos, em São Paulo, Federação
Paulista dos Homens de Cor, o Centro Cívico 13 de Maio e a Sociedade
Beneficente Isabel a Redentora etc. As festas convergiam neste início de século
XX para a “fraternidade brasileira”, muito além da questão racial. “...Nas
ruas, nas praças, nos cantos, recantos e arrabaldes de São Paulo, a Lei Áurea
era sustentada com alegria, energia e fervor, por meio de batuques, sambas e
jongos, principalmente” [Idem], em todos os seus significados polissêmicos.
Em outras palavras, a Abolição foi um fato objetivo e essencialmente
subjetivo. Suas demandas e militância atearam fogo no Brasil oligárquico! Como
afirmado acima, foi um processo inconcluso, porque não atingiu a emancipação
dos explorados devido a contrarrevolução desencadeada pela "República". Muitas teorias surgiram, balizadas pelo descarte da luta de
classes (muitas teses oriundas do Departamento de Estado americano,
principalmente disseminadas pelo Partido Democrata). Trilharam, não obstante,
para as políticas identitárias, amiúde racialistas e passionais a serviço da
classe dominante, que hoje vigem na esquerda mundial. O identitarismo, muitos
convertidos em seitas, tomam para si a autoridade para estudar e analisar, no
nosso caso, o negro escravizado, como se fossem os proprietários da História de
um povo e não raro romantizam-na de forma quase infantil e/ou sectária sob o
signo da “representividade”.
Enfim, devemos
compreender todo o processo acima descrito sem simplismos, de um dia, o 13 de
Maio; mas sim como uma revolução exposta durante trezentos anos no território
brasileiro: a única revolução triunfante em nossa história que, graças a ela
toda uma estrutura jurídica e social fora transmutada!
Notas:
:
* Foto de capa: grande comemoração pós-Abolição, missa campal
1 Resolução número 11 do Comitê
de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro.
2 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/11/presidente-da-fundacao-palmares-nomeado-por-bolsonaro-diz-que-brasil-tem-racismo-nutella.shtml,
acesso em 10 de maio/2020.
3 https://www.lainsignia.org/2005/mayo/ibe_028.htm.
acesso em 9 de maio/2020.
4 ALMEIDA, Silvio. Racismo
Estrutural. [S.l.]: Pólen Livros. 10 de julho de 2019 p. 46. ISBN
978-85-98349-91-6.
5 FREYRE, Gilberto. Casa
grande & Sensala. 48º Ed. Global Editora. 2003 https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/229314/mod_resource/content/1/Gilberto%20Freyre%20-%20Casa-Grande%20e%20Senzala.pdf
6 MAESTRI, Mario. 13 de maio:
A única revolução social do Brasil. La Insignia. Brasil, maio de 2005. https://www.lainsignia.org/2005/mayo/ibe_028.htm.
7 GORENDER, Jacob. O
escravismo colonial. Ed. Ática, 1985.
8 FERRARI, Márcio. A batalha
da Abolição. https://revistapesquisa.fapesp.br/2016/02/19/a-batalha-da-abolicao/.
9 POMPEIA, Raul. O Ateneu. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000297.pdf
10 ALONSO, Angela. Flores,
votos e balas. Editora Companhia das Letras.
11 MAESTRI, Mário. Revolução
e Contrarrevolução no Brasil, p.71.
12 CONRAD, Robert. Os últimos
anos da escravidão”. Civilização Brasileira (1978, 2ª edição).
13 DOMINGUES, Petrônio. Salve
o 13 de Maio: as comemorações da abolição da escravatura. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH - São Paulo, julho 2011
14 __________________.“A
redempção de nossa raça”: as comemorações da abolição da escravatura no Brasil1.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 62, p. 19-48 - 2011. https://www.scielo.br/pdf/rbh/v31n62/a04v31n62.pdf