“Se eu tivesse/se eu tivesse/muitos vícios/o meu nome/o
meu nome/era Vinicius/se esses vícios/fossem muito imorais/eu seria o Vinicius
de Moraes!”
N
|
o dia 9
de julho de 1980 falecia Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes. Nascido no
seio de uma família de músicos do bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, Vinicius
de Moraes, o “Poetinha”, assim carinhosamente chamado por seus amigos.
Inveterado boêmio, foi na noite que conheceu seus principais parceiros de
música, de copo, teatro, paixões, amores e onde aperfeiçoou seus dotes poéticos
mais líricos. Desde criança demonstrou grande habilidade para as letras e a
música, tanto que aos dez anos já participava do coral da escola e começa a montar
pequenos escretes teatrais. Sempre presentes, amor e a saudade são ingredientes dialeticamente
inseparáveis em boa parte das criações de Vinicius de Moraes, que deixou a vida
e fincou bandeira na eternidade no dia 9 de julho de 1980, com uma obra
riquíssima, cativante e transformadora. Uma vida imersa na boemia, das profundezas da sua alma trouxe-nos a sua poesia na mais ampla magnitude, em sonetos de perfeita métrica! Soube como ninguém transformar a sua poesia em música
TRAJETÓRIA
DE AUTOCONHECIMENTO
Em 1930
ingressa na Faculdade de Direito do Catete, para a qual dizia não ter a menor
vocação, porém teve a oportunidade de conhecer o escritor Otavio Faria que lhe
formou para o mundo das artes literárias e travou conhecimento com os
“modernistas” Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade e até Plínio Salgado
que também fazia parte do movimento. Neste ínterim, atuou como censor
cinematográfico, crítico de cinema sob a companhia de Manuel Bandeira, Cecília
Meireles e Afonso Arinos de Melo Franco. Em 1943 foi aprovado em concurso para
o Ministério das Relações Exteriores, sendo empossado embaixador em Los
Angeles, onde exerceu o cargo por quatro anos. Pouco depois foi deslocado para
Paris, período mais profícuo para desenvolver o trabalho de... poeta!
Vínicius fala de si
Os anos
50 marcaram o “debut” de sua veia musical mais aprofundada ao conhecer um jovem
pianista em suas “andanças” pelos cabarés e noites cariocas, Tom Jobim. Na
década seguinte, sua singeleza musical chamou a atenção de gênios da música do
quilate de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Baden Powell e tantos outros autores
de nossa arte. No entanto, após o golpe militar contrarrevolucionário de 1964
foi afastado do Itamaraty com a criação do AI-5 sob o estapafúrdio argumento de
que sua “vida boêmia era incompatível com a carreira diplomática”, o que na
verdade implicava a deculturação do país imposta a ferro e fogo pelo regime
gorila. A trajetória de vida de Vinicius de Morais marcou o auge da produção
artística no Brasil, dos anos 50 aos 80, mas após a queda do Muro de Berlim e
da URSS, o imperialismo e sua mídia venal trataram logo de esmagar as tradições
culturais de raiz, impondo não só a barbárie no campo social como no âmbito das
artes em todo o planeta.
Com Pablo Neruda |
O POETA
AMADURECE
Importante
destacar foi a evolução estético-política do “Poetinha” em sua trajetória de
vida. De simpatizante do integralismo e com uma obra eminentemente cristã na
juventude, o convívio direto e aberto com a nata da intelectualidade boêmia
abriu-lhe os olhos para amadurecer em todos os aspectos. Seu primeiro livro
publicado, “Forma e Exegese” (1935) e “O Caminho para a Distância” refletem bem
o início místico-religioso de sua carreira, porém não demora a romper com o
arcaísmo quando em 1936 publica os versos profanos e sensuais de “Ariana, a
mulher” desaguando em uma elaboração de forte conteúdo popular. Em uma turnê
pelo nordeste do Brasil, em 1942, ao lado do escritor americano Waldo Frank
muda radicalmente seus conceitos políticos, tornando-se um antifascista,
sentimento este aprofundado ao conhecer Pablo Neruda em 1945 de quem foi grande
amigo. Colaborador do quinzenário “Para Todos”, de Jorge Amado, publica aí o
poema “O Operário em construção” no ano 1956 como desfecho desta nova visão de
mundo e inaugura a parceria com Tom Jobim, escalado para compor a música da
peça teatral “Orfeu da Conceição” e quase concomitante, com João Gilberto junto
a quem daria início a chamada “Bossa Nova”.
A bossa
nova surgiu precisamente junto com o processo de urbanização e industrialização
das grandes cidades brasileiras, respondendo às especificidades ideológicas e
objetivas da época, tanto é verdade que jovens de classe média emergente do
pós-guerra foram seus proponentes e refletia suas aspirações espirituais e
humores. Vinicius, com João Gilberto, lança o LP “Canção do amor demais” em
1958, mostrando ao mundo a batida ritmada e inovadora da “bossa”, acompanhada
da cantora Elizeth Cardoso, disco chave para se compreender a estética refinada
do movimento. Um ano depois lança outro LP, “Por toda a minha vida” com letras
suas e Tom Jobim. No início da década de 60 começa a compor com Carlos Lyra e
Pixinguinha, em uma fase que dá os primeiros passos para a superação da “bossa
nova”, cujo desenvolvimento aconteceu quando se aproximou de Baden Powell,
dando origem aos “afro-sambas” (“Berimbau”, “Canto de Ossanha”, “Samba da
Bênção”...).
RUPTURA
COM A BOSSA NOVA
Com Baden Powell, ruptura com a "Bossa Nova" |
Em 1962
compõe com Carlos Lyra a peça “Pobre menina rica” lançando Nara Leão como
cantora, já rompendo com os dramas da classe média. Em 1966 lançou o LP “Os
afro-sambas”, evidenciando uma clara ruptura com a estética e os lamentos
pequeno-burguês da bossa nova. A parceria com Toquinho iniciou-se dois anos
depois de ser afastado do cargo de embaixador, em 1970, e com quem grava vários
discos na Itália, Paris (1972-77) e no Brasil. No final dos anos 70, com o
esgotamento político do regime militar, chegou a declamar poemas no sindicato
dos metalúrgicos de São Bernardo dos Campos a convite do então presidente da
entidade Luis Inácio da Silva. Várias músicas de sua autoria foram censuradas
pelos militares, como “Paiol de Pólvora”, “Valsa do Bordel” (nos shows dizia
ser a “Valsa da Puta”) por “afrontarem e desrespeitarem o regime político”
vigente diziam os autos do processo contra o Poetinha.
No dia
9 de julho de 1980 o coração do Poetinha parou de bater, após um derrame
cerebral ocorrido três meses antes, cujas sequelas provocaram um edema
pulmonar, deixando inconclusas e perdidas as obras “Roteiro lírico e
sentimental da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro” e “O dever e o
haver”. Seu último poema soa como uma balada triste, uma despedida:
“Trago a doçura dos
que aceitam melancolicamente./E posso te dizer que o grande afeto que te
deixo/Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas/Nem as
misteriosas palavras dos véus da alma.../É um sossego, uma unção, um
transbordamento de carícias/E só te pede que te repouses quieta, muito quieta/E
deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático
da aurora” (Vinicius de Moraes - Poesia
completa e prosa).
O rumo
tomado por Vinicius de Moraes comprova mais do que nunca a máxima segundo a
qual a arte deve estar fortemente enraizada no popular e voltada para a vida,
caso contrário tende a definhar gradativamente ou para o campo da reação ou
para a extinção pura e simples. Vinicius foi um dos poucos intelectuais que
viveu verdadeiramente como poeta, para a arte, a liberdade de criação, manifestadamente
engajado em seu próprio tempo.
A ARTE
NA SOCIEDADE
São as
sábias palavras de um velho militante que enfatiza o papel do artista dentro do
capitalismo e a luta pelo socialismo: “(...) ao defender a liberdade de
criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e
longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita ‘pura’ (...).
Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência
sobre o destino da sociedade... No entanto, o artista só pode servir à luta
emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e
individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e
quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior” (Trotsky
& Breton. Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, 25/7/1938).
Toquinho, outro grande parceiro da poesia |
No
documentário produzido em 2006 por Miguel Faria e sua filha a cineasta Suzana
de Moraes, sobre a vida de Vinicius, foram colhidos vários depoimentos de
parceiros ainda vivos do “poetinha”. No testemunho dos antigos companheiros de
“farra e de música”, como o de Toquinho e Chico Buarque, ambos tiveram pelo
menos a honestidade intelectual de reconhecer que “no mundo atual não haveria
espaço para Vinicius”. A “observação” vinda de dois ícones da MPB não foi à
toa, tanto Chico como Toquinho se converteram ao atual “mundo do politicamente
correto”, onde a arte e a vida não tem nenhum compromisso com a crítica à realidade social. Realmente seria inimaginável pensar hoje no maior ídolo de
nossa música e poesia entrar em um estádio lotado de operários em greve e
declamar seu poema: “O operário em construção”, sob a admiração e respeito dos trabalhadores e dos ativistas progressistas em plena luta contra a ditadura militar.
“...Ah, homens de pensamento
“...Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia...”
[Operário em Construção, trecho]
Um mundo novo nascia...”
[Operário em Construção, trecho]
Tom Jobim marcou a harmonia musical do poeta |