sábado, 11 de julho de 2020

ENSINO A DISTÂNCIA E TECNICISMO: uma reflexão necessária acerca do privatismo do ensino em meio à pandemia do Covid-19


U
ma temática que tem sido muito propagada pelos meios de comunicação nestas tristes conjunturas de crise sanitária, econômica e política é aquela referente aos caminhos que o sistema de ensino tende a percorrer com a suspensão das aulas presenciais. A mídia corporativa e os grandes grupos econômicos privados, principalmente os da rede privada de ensino, vêm fazendo do ensino a distância uma panaceia para todos os males. No entanto, sabemos o que representa o “arsenal” exposto por estes segmentos em um país semicolonial (que se encaminha para neocolonial) com profundas desigualdades sociais. Senão vejamos uma análise mais fina relativa às implicâncias desta nova “escolástica” em seus aspectos mais emblemáticos e, porque não, filosóficos acerca do tecnicismo aplicado à educação.

Para tanto, problematizar é o melhor método a fim de tornar possível a compreensão do processo com o qual toda a comunidade escolar está envolvida em tempos de pandemia e diante dos pressupostos organogramas do ensino a distância. Faz jus discutirmos o papel da escola na história, a sociedade como um todo e, principalmente as representatividades de poder dela imanentes, para então inseri-la no campo da ciência e da ideologia - Paulo Freire ensinara-nos que a educação, além de humanamente política [1], é eminentemente ideológica (ou do opressor ou do libertador![2] - nos meandros da política educacional no regime capitalista. Por fim, as ambivalência da relação professor/aluno em suas ressignificações filosóficas. Célere é o pensamento de Condorcet “A função da educação pública é criar um povo insubmisso e difícil de governar”! Por isso, atualmente o desmanche da educação é um projeto político!

TECNOLOGIA E HUMANIDADE

O coeficiente tecnologia responde a uma simples e grosseira questão evolucionista, ou que segue seu curso linear inevitável rumo a um futuro positivo, tendo, portanto que ser aceito acriticamente? Claro que não! Muito embora o avanço tecnológico seja uma parte inerente da humanidade é preciso ter a dimensão do que ele representa em sua aplicabilidade no ensino e como fundamento do trabalho social humano. Marx, no século XIX, já advertia que “tudo que a classe operária produz a ela pertence”, até mesmo a imaterialidade da alçada cultural!

Mais latente, nesta perspectiva, num país de imensas desigualdades como o Brasil, torna-se imperativo dar os passos iniciais para a distensão às noções de poder e suas implicações nas estruturas educacionais. Vale, de forma mais contundente, ressaltar o papel da técnica no capitalismo, no qual a subsunção do trabalho assalariado à técnica seria uma de suas premissas (PATTO, 2013 e ZUIN, 2006).

Trata-se da subtração da capacidade produtiva do trabalhador como sujeito, alimentando via maquinário a exigência de incrementar a produção com mais-valor. Neste âmbito não há neutralidade possível, sobre a qual Marx diz que “a tecnologia sequestra a capacidade total do trabalhador, a redução do tempo de trabalho pela produtividade é uma abstração murchada (...) faz do trabalhador um autômato dotado de vida. (...) o trabalhador tornou-se um componente vivo da oficina” [3], ou seja, converteu-se em uma forma de dominação da subjetividade humana, alterando sobremaneira o ritmo, o tempo e a força dos corpos, pouco espaço sendo-lhe reservado para sua autonomia.

A Natureza não cria máquinas, computadores, energia; são produtos da vontade humana de agir sobre a Natureza, “São órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força objetivada do conhecimento” [4], apesar da alienação do trabalhador em relação à rotina fabril. Nesta perspectiva, a técnica, muito além de humanizar o indivíduo, acorrenta-o de uma forma ainda mais incisiva ao establishment, em processo contínuo de alienação e coisificação.

BARATEAR O TEMPO COMO PREMISSA

Escola pública cada vez mais precarizada
Colocar em pauta a tecnologia de forma crítica não significa postar-se contra sua assunção. Longe disso, como dito acima, é parte indissolúvel do trabalho humano em desenvolvimento das forças produtivas! O que se tem a destacar é a noção de poder em meio às desigualdades dentro da lógica exploratória capitalista: aquela que fragmenta a sociedade em categorias hierarquizadas de classes sociais, concomitante tem a finalidade de acelerar o tempo sem o compensar em pagamento efetivo (o mais-valor).

Esta aceleração em modo constante, em se tratando de sua aplicabilidade na educação, não se volta para formar inteligência, nem sensibilidades, uma vez que sem compensação caracteriza-se pela desvirtualização do tempo. A partir desta incongruência destaca-se em sua essência o propósito de barateamento do tempo sob quaisquer circunstâncias!

Aonde queremos chegar? Vejamos: referimo-nos a barateamento de custos. Por exemplo, ministrar uma aula com UM professor para milhares de alunos, tendo à disposição uma câmera, uma louza e internet, dispensando pelo menos a necessidade de um número considerável de docentes presenciais. Revela-se uma tendência este movimento que o mercado quer impor, solapando as já precárias escolas públicas.

Que formação derivar-se-á deste sistema a distância? Ela basicamente acontecerá em nível da individualidade e em caráter isolacionista. Ou seja, estará relacionada à formação do Ser unidimensional, cuja expressão mais acaba vem sob a forma acrítica, cimentada sob bases tayloristas (o funcionamento de máquinas e intermediados por elas) e fundamentalmente homogeneizado. Os planos existenciais do indivíduo estariam submetidos aos desígnios pragmáticos impostos de cima: hostilidade à formação plena, o enfraquecimento do ensino pela subsunção da técnica, a (des)qualificação para o mercado como mão de obra, em geral, barata. Com um aparelho educacional voltado para o sistema, este atuaria como máquina de moer carne, pois não estaria formando consciências, nem conhecimento crítico, uma vez que não há formação de SUJEITO (sociabilidade e ideia de coletivo). Fica a pergunta: é possível avaliar o processo de aprendizagem de alguém apenas por intermédio de testes e provas escritas e sem contato com o tutor??? Teremos dispostas como “oferta de mercado” meras avaliações quantitativas, claro, mais rápidas e mais fáceis de serem consideradas em menor tempo possível. É pegar ou largar, preconiza o ágil mercado de diplomas...

As mudanças escolares tem a sua derivação desde a Revolução Industrial e a revolução burguesa, quando premiam-se novas necessidades materiais pela sociedade emergente: o capitalismo exige mão de obra para trabalhar nas fábricas e propriedades rurais agropastoris. Mas ainda havia o domínio cultural da Igreja e, por conseguinte, a limitação da expressão burguesa. O Iluminismo veio a solapar esta recalcitrante hegemonia política, forjando as bases da revolução burguesa primeiramente na Inglaterra (econômica em 1688) e depois a política na França (1779) colocando o absolutismo na guilhotina. Novas necessidades materiais advieram, pois para exercer seu poder deveriam expandir seu domínio econômico, seu meio seriam as escolas de massas para formar mão de obra. A ciência deveria ser elevada ao nível do desenvolvimento das forças produtivas e da técnica, superando-as num continuum de precisão. Houve, no entanto, resistências à mecanização das lavouras, do processo artesanal. Máquinas foram destruídas até que se tornasse algo aceito e disseminado quer como cultura quer por via repressiva do Estado burguês incipiente.

Segue-se, em suma, estes mesmos parâmetros até os dias atuais em se falando de modelo de escola. As resistências perante as tecnologias aplicadas à educação estão em similitude às da implantação do maquinário durante a revolução industrial numa Europa assaz eivada de preconceitos (lato sensu) medievais. Contudo, plataformas da tecnologia da informação e seus pertencimentos destinadas ao ensino têm que ser postas em análise, principalmente num país como o Brasil.

LOCUS DO ENSINO A DISTÂNCIA

Como acima frisado, a tecnologia surge para modificar as relações tempo/espaço no sentido de facilitar a vida humana e na tendência do menor esforço. Por outro lado, traz consigo o fetichismo e a reificação [5]como espírito de um tempo, evidenciando a exasperação de sua cultura mesma: as pessoas conectam-se à internet de um modo completamente solitário, o que não necessariamente pode ser caracterizada como comunicação, uma vez que ela se dá através de sua virtualidade e de forma indireta, não primária. O que isto significa?

Este é o ponto fulcral desta reflexão. A comunicação pelos meios técnicos hegemoniza-se sobre a primária, posto que revela uma proximidade virtual entre os interlocutores cuja troca de experiências é bastante diversa à daquela exercida pelo convívio direto, tendo-se como substrato a economia de tempo. Consome-se tempo como atributo do ser e princípio da matemática da economia.

Desde 2005 o Ministério da Educação vem colocando em pauta o projeto de Universidade Aberta do Brasil [6] e nele postulando o conceito de polo presencial [7], as universidades se encarregariam de elaborar os cursos, da formação dos professores e formular seus Projetos Políticos Pedagógicos. O governo, à época, acreditava assim aumentar o número de vagas nas universidades federais, democratizando-as. O projeto referia-se às zonas mais remotas do país, como muitas áreas do Alto Amazonas, na qual o EAD seria a solução mais adequada, pois o acesso físico à escola seria praticamente impossível. Mas fica nisso, praticamente desregrada e totalmente deturpada nas Eras golpistas de Temer/Bolsonaro. Parece muito mais um monstro da educação livresca, desprovida da força das paixões humanas e das exigências sociais, onde o sujeito (aquele que sofre a ação) se abstêm de autonomia.

FRAGMENTAÇÃO, PRECARIEDADE E COISIFICAÇÃO

Os rumos a que tem se destinado o ensino neste período de pandemia do coronavírus são os mais diversos e esdrúxulos possíveis. De um lado governos querem impor ensino a distância em escolas públicas cuja maioria dos estudantes não tem acesso à internet, nem no ensino básico, tampouco no nível superior.

Instituições privadas que "robotizam" o ensino
Num quadro de extrema crise por que passa a educação no Brasil, bem como a economia, a adoção do ensino a distância tem se tornado um recurso de mercado e de controle por parte da Bigdata de dados dos “consumidores”. Responde à lógica de “reengenharia” nas instituições de ensino, especialmente as privadas: “Há uma lógica de redução de gastos, economia e certa otimização de processos por parte dessas instituições que vêm ofertando numa escala cada vez maior de cursos a distância. Infelizmente, a tendência para o futuro é termos registros de cursos um pouco mais precarizados e mais aligeirados” [8]. A comunidade acadêmica passa à condição de coisa, sendo o professor um simples prestador de serviço e o estudante um consumidor desses serviços. A qualidade do ensino tende a decair em razão da não formação docente para este objetivo. Um “coach” ou “youtuber” palpiteiro poderia ser contratado para este fim.

Acrescente-se o fato, os maiores interessados nesta modalidade de ensino são as instituições e institutos privados que têm como meta exclusiva a lucratividade imediata, tendo a tecnologia como aliada a “alteração do tempo e do espaço” na “produtividade” acadêmica, ou seja, (de)formar o mais rápido possível os alunos, com UM ou DOIS professores ensinando milhares de estudantes via plataformas digitais igualmente empresariais (Google, Youtube, Facebook e afins). Custos, este é o nó górdio da questão, haja vista que o aluno teria um custo de três mil reais durante todo o curso, já os dos cursos presenciais teriam um custo de aproximadamente dez mil reais. “Aqui, há um que pensa e outro que consome, eis o que é a fragmentação hierárquica do processo educativo. De acordo com o professor Cesar Minto “...há um que pensa, o outro que passa as atividades, outro que grava, outro acompanha a evolução do aluno. Vira uma linha de formação fabril” [9]. Em seu fundamento, trata-se da neoliberalização total do ensino, na qual cada um está por si e para si em seus isolamentos culturais (não pandêmicos).

Só um exemplo bem cristalino acerca do “deixar a boiada passar”, quando o embusteiro Luciano Huck afirma com o maior cinismo que ““essa pandemia veio para acelerar o processo de digitalização da educação” [10]. Nesta mesma vereda, a Fundação Lemann, a Fundação Roberto Marinho, Banco Itaú etc. foram as principais lobistas da BNCC, aprovada a toque de caixa e por compra de deputados no governo Temer [11].

Pior ainda quando o ensino transmuta-se em robôs, tal como faz a rede de ensino Laureate para corrigir trabalhos dos alunos através de uma plataforma de inteligência artificial (a “blackboard”). “Os alunos não sabem, e assim somos orientados: não podemos informá-los e devemos responder a todas as demandas como se fossemos nós, professores, os corretores” [12]. Em fase de implementação, o sistema com notas pré-programadas (algoritmos) quando pronto provocará a demissão em massa de professores, anunciada por e-mail [13]. Robôs ensinando os estudantes a serem robôs...

PLATAFORMAS PÚBLICAS, PROJETOS COLABORACIONISTAS E FORMAÇÃO

O assunto é bem vasto - e não menos acalorado. Aqui fiz apenas algumas considerações teóricas, portanto, não se encerra. Não podemos nos colocar contrários à técnica, pois como tratamos acima, ela é produto da ação humana, mas é preciso ter claro a quem ela pertence de fato e quem a controla: aos donos dos meios de produção (os capitalistas). A crítica mais profunda a fazer é quanto ao tecnicismo pedagógico comercial. Lembrando que o tecnicismo (darwinismo social e hierarquia racial) nas décadas de 30 e 40 do século passado conduziu a Alemanha ao Nazismo, cuja Ciência fora usada ideologicamente para gentrificação e eugenia da população!

Resumindo: ensino a distância seria para pobre, enquanto o presencial estaria reservado à elite, à classe média e burguesa; recrudesce-se como sinônimo de exclusão, mesmo paradoxalmente se estando dentro da Universidade cada vez mais elitizada. Assim, adotar os modelos privados de EAD significa tapar o sol com a peneira, não soluciona o problema e ainda alimentará a evasão escolar, além de servir apenas para engordar a conta bancária das grandes corporações da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC).

Impor EAD em meio à crise do coronavírus significa alimentar ainda mais os índices de evasão escolar, pois cerca de 90% deste sistema está nas mãos de instituições privadas. Mesmo que seja colocada por prefeituras e estados, mais de 60% dos estudantes não têm acesso à internet, ao mesmo tempo professores não possuem formação para esta finalidade, além de terem que usar seus próprios pacotes de dados para ministrar suas aulas em verdadeiras “gambiarras” e improvisos desgastantes.

À guisa de conclusão, prossigo com o filósofo pré-burgues, Condorcet, um dos influenciadores da Revolução Francesa, anticlerical fervoroso e defensor do progresso como produto da perpétua ação humana: “Pela primeira vez o sistema geral dos conhecimentos humanos foi desenvolvido. O método de descobrir a verdade tornou-se uma arte que se pode aprender, a razão enfim encontrou o seu caminho. O gênero humano não cairá mais na obscuridade. Não está mais em poder de homem algum apagar esta chama” [14].

Para não cairmos nas arapucas das corporações privadas há a urgência dialógica com as escolas e a comunidade, formular a partir daí um método, o propósito e a supervisão estatal e pública de um futuro sistema de educação a distância, dentro de uma perspectiva colaboracionista das plataformas, plano de dados estatal, público e gratuito para discentes e docentes, ou seja, uma clara arquitetura pedagógica que ilustrasse não os interesses privatistas imediatos, mas um ensino focado na autonomia do sujeito, não como substitutivo dos elementos presenciais. Enfim, EDUCAÇÃO não se resume a ensino, muito menos aquele a distância! É um fenômeno muito mais complexo, muito além de decorar textos e fórmulas: implica convívio, conflito, afetividades, efetividades, movimentos de massa relativos a greves, cultura, aprendizados de vida, despertar de paixões, não possíveis no contexto solitário das conexões virtuais!

Notas                                                                     

1 FREIRE, Paulo. A Educação é um ato político. Cadernos de Ciência, Brasília, n. 24, p.21-22, jul./ago./set. 1991;

2 ___________. Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire - Paz & Terra, 36.ª ed. 2003; 1.ª ed. 1970;


4 Idem;

5 Processo inerente às sociedades capitalistas que supervaloriza a produção, em detrimento das relações humanas e sociais, podendo ocasionar a perda da subjetividade, da autonomia e da autoconsciência, atribuindo ao ser humano uma natureza inanimada e automática, como coisas ou mercadorias. Valorização excessiva de coisas, em detrimento de pessoas;






11 Idem



14 FERREIRA, Pedro Peixoto. Religião e progresso em Condorcet: gênio, técnica e apocalipse. 2002



Bibliografia básica e marco teórico                                              

PATTO, Maria Helena Souza. O ensino a distância e a falência da educação. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 2, p. 303-318, abr./jun. 2013. Acesso em 25 de junho 2020 http://www.periodicos.usp.br/ep/article/view/58619/61686

ZUIN, Antonio A. S. Educação a distância ou educação distante? O programa universidade aberta do Brasil, o tutor e o professor virtual. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 935-954, out. 2006. Acesso em 28 de junho 2020 https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302006000300014&script=sci_arttext