sábado, 21 de agosto de 2021

ESTADOS UNIDOS FOGEM DO AFEGANISTÃO: Uma virada estratégica do império americano em torno da Ásia para enfrentar Rússia e China

É possível comparar fuga americana do Vietnã com a atual escapada do Afeganistão?

Muitos analistas internacionais, dentro os quais vários da esquerda, avaliaram que a saída das tropas americanas do Afeganistão teria sido um “momento Saigon” (ESCOBAR, 13/8) no dia 12 de agosto, quando as milícias talibãs tomaram o país. Seria correta tal caracterização? Em apenas quatro dias tudo fora resolvido sem que quase não houvesse tiros ou canhonaços, com um número ínfimo de vítimas. Logo os “estudantes da religião” estavam proclamando oficialmente as bases do novo governo, o “emirado islâmico do Afeganistão” já dentro do palácio presidencial. A pergunta que deve ser feita, teria sido uma evacuação negociada entre o talibã os EUA e a Otan? Por que esta guerra, para muitos incautos, é considerada “no fim do mundo”? Qual a importância de um pequeno país agropastoril para as grandes potências econômicas mundiais?

UM PAÍS ESTRATÉGICO PARA O OCIDENTE CAPITALISTA-CRISTÃO

O Afeganistão, ainda em pleno século XXI, é um país eminentemente feudal, dividido por inúmeras etnias, cujas vidas são cimentadas por uma economia agropastoril e/ou nômade em uma região predominantemente montanhosa. Faz fronteira com países considerados potências nucleares como Paquistão, China e Irã, além de outros como Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão. Não possui saída para o oceano, no entanto tem sido há séculos considerado de suma importância estratégica para o mundo capitalista no que tange a rotas comerciais rumo à Ásia, merecendo inclusive comentário de Engels: “A posição geográfica do Afeganistão e o caráter peculiar do povo investem o país com uma importância política que dificilmente pode ser superestimada nos assuntos da Ásia Central” (carta a Marx de 28 de maio de 1857).

Entretanto, em 1979, após a “revolução de abril”, durante breve capítulo de progressividade político-cultural, o país conheceu uma “revolução pelo alto”, quando foi instaurado um regime político-social laico de características socializantes apoiado pela antiga URSS. À época, os novos governantes colocaram em prática um programa de superação dos limitados costumes medievais (feudais) e de atraso econômico através da reforma agrária, alfabetização em massa dos camponeses através de um sistema público de ensino, emancipação das mulheres (historicamente sempre menosprezadas) e dos jovens, projeto ambicioso de nacionalizações, controle do capital financeiro, sistema de cooperativismo no campo etc.

Mujahideens, antissoviéticos
Os novos ventos que sopravam melhorias nas condições de vida da população logo despertaram a ira hidrofóbica do(s) império(s) no Ocidente, no contexto da guerra fria. O tribalismo patriarcal (VISENTINI, 2013) agropastoril começaram a reagir com violência contra a renovação laica da sociedade, convertendo-se em oposição ao governo socializante. Esse setor tradicionalista uniu-se aos mujahideens (guerrilha conservadora e religiosa que atuava no interior do país), ambos passaram a ter gordos aportes em dinheiro (em despacho secreto de Jimmy Carter) e logística bélica por parte dos EUA, Paquistão, China e Arábia Saudita. Deste beneplácito contrarrevolucionário é que irá surgir a Al Qaeda de Osama Bin Laden, treinado diretamente pela CIA, considerado então como “guerreiro antissoviético” e não terrorista pelo Departamento de Estado norte-americano. Em um contexto de guerra fria, foram dez anos de embates entre a URSS e os EUA (Otan), provocando uma exaustão na economia soviética. Pode-se afirmar que foi uma autêntica “armadilha de urso” armada pelos americanos, pois os recursos gastos foram imensos, praticamente faliram a Rússia brejneviana.

Em crise, a URSS foi obrigada a retirar suas tropas do Afeganistão sob o comando de Gorbachev em 1988, dando curso a uma selvagem guerra civil que se prolongou até 1996. Do vácuo de poder acentuado no caos, os “estudantes” em marcha como produto político de vários acordos tribais tomou a capital Cabul, incentivados por Paquistão e as monarquias árabes.

Os “guerreiros anti-soviéticos” como heróis...
Doravante, as grandes potências capitalistas ocidentais passaram a considerar o país como o “eixo do mal” que abriga terroristas de todas os matizes, tendo à cabeça Bin Laden. O talibã tornou-se o senhor do país afegão. “Em um país economicamente devastado socialmente fustigado e politicamente decepcionado com a continuação da guerra civil pelos partidos tradicionais, o surgimento desses ‘puros’, em 1994, que pregavam a unidade, a ordem e o fim da guerra pareceu uma esperança…” (VISENTINI, 2013 , p.335).

Em 2001, após os ataques às Torres Gêmeas, os EUA junto com a Otan desencadeou uma operação de guerra contra o Afeganistão em busca de Bin Laden. Sob o subterfúgio de “guerra ao terror” invade o Afeganistão, sabemos que os objetivos eram outros. Foram 20 anos de destruição da infraestrutura anteriormente já débil, perseguições indiscriminadas a cidadãos, assassinatos de civis em verdadeiro banho de sangue. O ódio à ocupação militar ocidental era latente e incontrolável desde as inúmeras tribos existente no país.

VIRADA ESTRATÉGICA NO CAMPO DA GEOPOLÍTICA NORTE-AMERICANA

Durante a violenta ocupação militar americana, analistas e o próprio governo gabavam-se que o talibã estava dominado. Ledo engano: as células talibãs estavam apenas adormecidas, em cerco às principais cidades, incluindo Cabul. Foi só dar sinal pela inteligência paquistanesa que os ocupantes estavam enfraquecidos que elas despertaram! O exército afegão sucumbiu. Haja vista o cercamento, os comandantes das tropas invasoras trataram de negociar com o talibã, agora donos da situação, a retirada sem combate, com uma revoada de aviões e helicópteros, feito galinhas em vergonhosa fuga!

Não houve confrontos, portanto, não foi conquista. Isto de idealizar um embate anti-imperialista é um tremendo equívoco: os EUA debandaram e levaram de roldão a Otan. O objetivo da revoada das galinhas é abrir espaços para a CIA ocupar e assim, em pacto com o talibã, atacar o a Rússia, a China e o Irã, estabelecendo bases militares e paramilitares no Paquistão, país outrora centenário nas epígrafes contrarrevolucionárias na Ásia Central desde a revolução bolchevique de 1917.

Talibã ocupa rápido o palácio presidencial
Esta guerra no “fim do mundo” tem o objetivo de abocanhar o petróleo abundante no entorno do Afeganistão passando por cima do Irã e Rússia. Portanto, a evacuação, segundo alguns documentos secretos revelados pela Rússia, tem objetivos estratégicos para a região por parte do imperialismo norte-americano e seus consortes ocidentais como a Inglaterra, Alemanha, França, Arábia Saudita, Egito etc.

Não há nada de progressivo ou de positivo o pseudo-abandono do Afeganistão por parte da Otan, além do mais entrega de bandeja o poder ao que há de mais reacionário no mundo. Equiparar a atual situação afegã com a estupenda vitória vietnamita na década de 70 é no mínimo falsear a realidade, pois triunfou a teocracia fundamentalista, acordada com o ex-presidente Trump em 2020: “Biden estava simplesmente ratificando o processo de paz iniciado por Trump, com o apoio do Pentágono, que viu um acordo assinado, em fevereiro de 2020, pelos EUA, Talibã, Índia, China e Paquistão. O sistema de segurança americano sabia que a invasão havia falhado: o Taleban não poderia ser subjugado, não importa quanto tempo permanecesse. A noção de que a retirada precipitada de Biden de alguma forma fortaleceu os militantes é bobagem” (TARIQ ALI, 2021).

O Pentágono, como analisado acima, planejava abandonar o Afeganistão desde o governo Obama, no entanto, só agora levado a cabo após inúmeras negociações políticas com os altos dirigentes do talibã. Os altos custos (U$$ 1,3 trilhões) para manter a ocupação falaram mais alto, provocando uma alteração no plano geopolítico dos militares americanos; não havia mais como manter um governo títere e seu exército de esfomeados contra uma força guerrilheira organizada em todo o país.

A outrora ocupação militar do Afeganistão teve como objetivo de obter um ponto estratégico de controle do império entre a Ásia Central e a Ásia do Sul, unindo-se à ocupação do Iraque, à sudoeste. A “perda”, hoje, do Afeganistão faz parte de um reposicionamento do imperialismo na região, em uma nova concepção de geopolítica e de dominação colonial ora sob o comando Democrata: acabou a desculpa esfarrapada de “guerra ao terror” (da Era Bush/Obama), para em seu lugar surgir a contenda em isolar a Rússia e evitar a expansão comercial da China na Ásia e no mundo inteiro. Não por acaso, Rússia e China já declararam apoio ao novo regime do talibã! A guerra é sempre o melhor recurso do capital para eliminar seus concorrentes diretos, por isso, paz não está no horizonte nesta e em outras regiões estratégicas do planeta, o sistema de guerra permanente é a razão de ser do Ocidente.

Para lograr este intento, vale fomentar o caos neste amplo perímetro asiático, confusões que vão desde a guerra híbrida (lawfare) até conflitos armados tribais localizados. Sim, em essência não deixa de ser uma derrota para o império, mas deve ser entendida dentro de um contexto político mais amplo, o de retrocesso em todos os níveis em todo o planeta ainda imerso numa pandemia. Como foi dito, tratou-se de uma importante derrota dos Estados Unidos e da Otan, mas no âmbito de barbárie, não pode ser considerada como positiva, ou de conquista para os trabalhadores.

FINAL PREVISÍVEL E MANUTENÇÃO DA BARBÁRIE

Há anos avaliava-se que esta “derrota” era iminente: “Sempre que os líderes ocidentais se perguntam, por que estamos no Afeganistão, eles vêm essencialmente com a mesma resposta: ‘para evitar que o Afeganistão se torne um estado falido e refúgio para terroristas’. No entanto, há muito pouca evidência de que o Afeganistão está se estabilizando. Pelo contrário, os combates estão se intensificando, as baixas estão aumentando e o Taleban está se tornando mais confiante” (RACHMAN, 2010).

EUA e sua política de terra arrasada
Na verdade, o que fizeram os Estados Unidos no Afeganistão foi a política de terra arrasada: não quiseram solver a crise da guerra civil; ao contrário, foram responsáveis pela morte de aproximadamente 100.000 afegãos, com milhões de feridos, 11 milhões de refugiados, enfim, deixou o país destroçado e largado à míngua, à sorte dos traficantes de heroína (papoula 90% da economia) e das reacionárias tribos rivais entre si. Poucas regiões ainda resistem ao talibã, como a província de Panshir, onde várias famílias e populares aderiram à resistência. Afirmar que o talibã possui bases populares e apoio das massas é um delírio de quem não tem a menor noção da brutal realidade que abarca o país tomado pelo reacionarismo teológico. Aqui, pode de fato, configurar-se uma nova guerra civil, e sim sangrenta como até agora não o fora.

Como “segurança”, os EUA anunciaram que vão estacionar suas tropas invasoras no Kuwait, de prontidão para atacar os afegãos “rebeldes”, bombardear, matar, destruir, enquanto os “vitoriosos” russos, iranianos, chineses e paquistaneses não desejam de modo algum a guerra em comum acordo com o talibã. A “guerra no fim do mundo” mostrou-se que está mais próxima de nós como nunca imaginávamos e, infelizmente, novos massacres estão por vir, muito embora o império tenha se retirado do Afeganistão e o talibã tenha se “modernizado” com tecnologias de alto padrão técnico.


Bibliografia consultada:                                                                                                         

Afeganistão: a história de um país em ponto estratégico apelidado de ‘cemitério de impérios’. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57516844

ALI, Tariq. https://newleftreview.org/sidecar/posts/debacle-in-afghanistan?fbclid=IwAR1gsgokboGEq9ahNVFHtyV56TyD-RAOYkY7yrKYL6kGx8dmJ6NuQTkQizs. Acesso em agosto de 2021.

ESCOBAR, Pepe. https://asiatimes.com/2021/08/a-saigon-moment-looms-in-kabul/ 13 de agosto.

IDEM. https://www.unz.com/pescobar/how-russia-china-are-stage-managing-the-taliban/?email=daily&__cf_chl_jschl_tk__=pmd_q7y8hyTzbEREZoOitvFFAAW8kn_PlRGSNI1pd509KaA-1629555728-0-gqNtZGzNAiWjcnBszQiR

HUSAIN, Fahd. https://www.dawn.com/news/1640212/red-zone-files-telling-the-pakistan-story August 12, 2021

RACHMAN, Gideon. Financial Times, 26 de junho de 2010.

VISENTINI, Paulo, G. Fagundes et ali. Revoluções e regimes marxistas. Rupturas, experiências e impacto internacional. Ed. Leitura XXI. 1ª reimpressão. 2013, pps. 328-337.