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É possível comparar fuga americana do Vietnã com a atual escapada do Afeganistão? |
Muitos
analistas internacionais, dentro os quais vários da esquerda,
avaliaram que a saída das tropas americanas do Afeganistão teria
sido um “momento Saigon” (ESCOBAR, 13/8) no dia 12 de agosto,
quando as milícias talibãs tomaram o país. Seria correta tal
caracterização? Em apenas quatro dias tudo fora resolvido sem que
quase não houvesse tiros ou canhonaços, com um número ínfimo de
vítimas. Logo os “estudantes da religião” estavam proclamando
oficialmente as bases do novo governo, o “emirado islâmico do
Afeganistão” já dentro do palácio presidencial. A pergunta que
deve ser feita, teria sido uma evacuação negociada entre o talibã
os EUA e a Otan? Por que esta guerra, para muitos incautos, é
considerada “no fim do mundo”? Qual a importância de um pequeno
país agropastoril para as grandes potências econômicas mundiais?
UM
PAÍS ESTRATÉGICO PARA O OCIDENTE CAPITALISTA-CRISTÃO
O Afeganistão, ainda em pleno século
XXI, é um país eminentemente feudal, dividido por inúmeras etnias,
cujas vidas são cimentadas por uma economia agropastoril e/ou nômade
em uma região predominantemente montanhosa. Faz fronteira com países
considerados potências nucleares como Paquistão, China e Irã, além
de outros como Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão. Não
possui saída para o oceano, no entanto tem sido há séculos
considerado de suma importância estratégica para o mundo
capitalista no que tange a rotas comerciais rumo à Ásia, merecendo
inclusive comentário de Engels: “A posição geográfica do
Afeganistão e o caráter peculiar do povo investem o país com uma
importância política que dificilmente pode ser superestimada nos
assuntos da Ásia Central” (carta a Marx de 28 de maio de 1857).
Entretanto, em 1979, após a
“revolução de abril”, durante breve capítulo de
progressividade político-cultural, o país conheceu uma “revolução
pelo alto”, quando foi instaurado um regime político-social laico
de características socializantes apoiado pela antiga URSS. À época,
os novos governantes colocaram em prática um programa de
superação dos limitados costumes medievais (feudais) e de atraso
econômico através da reforma agrária, alfabetização em massa dos
camponeses através de um sistema público de ensino,
emancipação das mulheres (historicamente sempre
menosprezadas) e dos jovens, projeto ambicioso de
nacionalizações, controle do capital financeiro, sistema
de cooperativismo no campo etc.
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Mujahideens, antissoviéticos |
Os novos ventos que sopravam melhorias
nas condições de vida da população logo despertaram a ira
hidrofóbica do(s) império(s) no Ocidente, no contexto da guerra
fria. O tribalismo patriarcal (VISENTINI, 2013) agropastoril
começaram a reagir com violência contra a renovação laica da
sociedade, convertendo-se em oposição ao governo socializante. Esse
setor tradicionalista uniu-se aos mujahideens (guerrilha conservadora
e religiosa que atuava no interior do país), ambos passaram a ter
gordos aportes em dinheiro (em despacho secreto de Jimmy Carter) e
logística bélica por parte dos EUA, Paquistão, China e Arábia
Saudita. Deste beneplácito contrarrevolucionário é que irá surgir
a Al Qaeda de Osama Bin Laden, treinado diretamente pela CIA,
considerado então como “guerreiro antissoviético” e não
terrorista pelo Departamento de Estado norte-americano. Em um
contexto de guerra fria, foram dez anos de embates entre a URSS e os
EUA (Otan), provocando uma exaustão na economia soviética. Pode-se
afirmar que foi uma autêntica “armadilha de urso” armada pelos
americanos, pois os recursos gastos foram imensos, praticamente
faliram a Rússia brejneviana.Em crise, a URSS foi obrigada a
retirar suas tropas do Afeganistão sob o comando de Gorbachev em
1988, dando curso a uma selvagem guerra civil que se prolongou até
1996. Do vácuo de poder acentuado no caos, os “estudantes” em
marcha como produto político de vários acordos tribais tomou a
capital Cabul, incentivados por Paquistão e as monarquias árabes.
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Os “guerreiros anti-soviéticos” como heróis... |
Doravante, as grandes potências
capitalistas ocidentais passaram a considerar o país como o “eixo
do mal” que abriga terroristas de todas os matizes, tendo à cabeça
Bin Laden. O talibã tornou-se o senhor do país afegão. “Em um
país economicamente devastado socialmente fustigado e politicamente
decepcionado com a continuação da guerra civil pelos partidos
tradicionais, o surgimento desses ‘puros’, em 1994, que pregavam
a unidade, a ordem e o fim da guerra pareceu uma esperança…”
(VISENTINI, 2013 , p.335).
Em 2001, após os ataques às Torres
Gêmeas, os EUA junto com a Otan desencadeou uma operação de guerra
contra o Afeganistão em busca de Bin Laden. Sob o subterfúgio de
“guerra ao terror” invade o Afeganistão, sabemos que os
objetivos eram outros. Foram 20 anos de destruição da
infraestrutura anteriormente já débil, perseguições
indiscriminadas a cidadãos, assassinatos de civis em verdadeiro
banho de sangue. O ódio à ocupação militar ocidental era latente
e incontrolável desde as inúmeras tribos existente no país.
VIRADA ESTRATÉGICA NO CAMPO DA GEOPOLÍTICA NORTE-AMERICANA
Durante a violenta ocupação militar
americana, analistas e o próprio governo gabavam-se que o talibã
estava dominado. Ledo engano: as células talibãs estavam apenas
adormecidas, em cerco às principais cidades, incluindo Cabul. Foi só
dar sinal pela inteligência paquistanesa que os ocupantes estavam
enfraquecidos que elas despertaram! O exército afegão sucumbiu.
Haja vista o cercamento, os comandantes das tropas invasoras trataram
de negociar com o talibã, agora donos da situação, a retirada sem
combate, com uma revoada de aviões e helicópteros, feito galinhas
em vergonhosa fuga!
Não
houve confrontos, portanto, não foi conquista. Isto de idealizar um
embate anti-imperialista é um tremendo equívoco: os EUA debandaram
e levaram de roldão a Otan. O objetivo da revoada das galinhas é
abrir espaços para a CIA ocupar e assim, em pacto com o talibã,
atacar o a Rússia, a China e o Irã, estabelecendo bases militares e
paramilitares no Paquistão, país outrora centenário nas epígrafes
contrarrevolucionárias na Ásia Central desde a revolução
bolchevique de 1917.
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Talibã ocupa rápido o palácio presidencial |
Esta guerra no “fim do mundo” tem
o objetivo de abocanhar o petróleo abundante no entorno do
Afeganistão passando por cima do Irã e Rússia. Portanto, a
evacuação, segundo alguns documentos secretos revelados pela
Rússia, tem objetivos estratégicos para a região por parte do
imperialismo norte-americano e seus consortes ocidentais como a
Inglaterra, Alemanha, França, Arábia Saudita, Egito etc.
Não há nada de progressivo ou de
positivo o pseudo-abandono do Afeganistão por parte da Otan, além
do mais entrega de bandeja o poder ao que há de mais reacionário no
mundo. Equiparar a atual situação afegã com a estupenda vitória
vietnamita na década de 70 é no mínimo falsear a realidade, pois
triunfou a teocracia fundamentalista, acordada com o ex-presidente
Trump em 2020: “Biden estava simplesmente ratificando o processo de
paz iniciado por Trump, com o apoio do Pentágono, que viu um acordo
assinado, em fevereiro de 2020, pelos EUA, Talibã, Índia, China e
Paquistão. O sistema de segurança americano sabia que a invasão
havia falhado: o Taleban não poderia ser subjugado, não importa
quanto tempo permanecesse. A noção de que a retirada precipitada de
Biden de alguma forma fortaleceu os militantes é bobagem” (TARIQ
ALI, 2021).
O
Pentágono, como analisado acima, planejava abandonar o Afeganistão
desde o governo Obama, no entanto, só agora levado a cabo após
inúmeras negociações políticas com os altos dirigentes do talibã.
Os altos custos (U$$ 1,3 trilhões) para manter a ocupação falaram
mais alto, provocando uma alteração no plano geopolítico dos
militares americanos; não havia mais como manter um governo títere
e seu exército de esfomeados contra uma força guerrilheira
organizada em todo o país.
A outrora ocupação militar do
Afeganistão teve como objetivo de obter um ponto estratégico de
controle do império entre a Ásia Central e a Ásia do Sul,
unindo-se à ocupação do Iraque, à sudoeste. A “perda”, hoje,
do Afeganistão faz parte de um reposicionamento do imperialismo na
região, em uma nova concepção de geopolítica e de dominação
colonial ora sob o comando Democrata: acabou a desculpa esfarrapada
de “guerra ao terror” (da Era Bush/Obama), para em seu lugar
surgir a contenda em isolar a Rússia e evitar a expansão comercial
da China na Ásia e no mundo inteiro. Não por acaso, Rússia e China
já declararam apoio ao novo regime do talibã! A guerra é sempre o
melhor recurso do capital para eliminar seus concorrentes diretos,
por isso, paz não está no horizonte nesta e em outras regiões
estratégicas do planeta, o sistema de guerra permanente é a razão
de ser do Ocidente.
Para lograr este intento, vale
fomentar o caos neste amplo perímetro asiático,
confusões que vão desde a guerra híbrida (lawfare) até
conflitos armados tribais localizados. Sim, em
essência não deixa de ser uma derrota para o império, mas deve ser
entendida dentro de um contexto político mais amplo, o de retrocesso
em todos os níveis em todo o planeta ainda imerso numa
pandemia. Como foi dito, tratou-se de uma importante derrota dos
Estados Unidos e da Otan, mas no âmbito de barbárie, não pode ser
considerada como positiva, ou de conquista para os trabalhadores.
FINAL PREVISÍVEL E MANUTENÇÃO DA BARBÁRIE
Há anos avaliava-se que esta
“derrota” era iminente: “Sempre que os líderes ocidentais se
perguntam, por que estamos no Afeganistão, eles vêm essencialmente
com a mesma resposta: ‘para evitar que o Afeganistão se torne um
estado falido e refúgio para terroristas’. No entanto, há muito
pouca evidência de que o Afeganistão está se estabilizando. Pelo
contrário, os combates estão se intensificando, as baixas estão
aumentando e o Taleban está se tornando mais confiante” (RACHMAN,
2010).
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EUA e sua política de terra arrasada |
Na verdade, o que fizeram os Estados
Unidos no Afeganistão foi a política de terra arrasada: não
quiseram solver a crise da guerra civil; ao contrário, foram
responsáveis pela morte de aproximadamente 100.000 afegãos, com
milhões de feridos, 11 milhões de refugiados, enfim, deixou o país
destroçado e largado à míngua, à sorte dos traficantes de heroína
(papoula 90% da economia) e das reacionárias tribos rivais entre si.
Poucas regiões ainda resistem ao talibã, como a província de
Panshir, onde várias famílias e populares aderiram à resistência.
Afirmar que o talibã possui bases populares e apoio das massas é
um delírio de quem não tem a menor noção da brutal realidade que
abarca o país tomado pelo reacionarismo teológico. Aqui,
pode de fato, configurar-se uma nova guerra civil, e sim sangrenta
como até agora não o fora.
Como “segurança”, os EUA
anunciaram que vão estacionar suas tropas invasoras no Kuwait, de
prontidão para atacar os afegãos “rebeldes”, bombardear, matar,
destruir, enquanto os “vitoriosos” russos, iranianos, chineses e
paquistaneses não desejam de modo algum a guerra em comum acordo com
o talibã. A “guerra no fim do mundo” mostrou-se que está mais
próxima de nós como nunca imaginávamos e, infelizmente, novos
massacres estão por vir, muito embora o império tenha se retirado
do Afeganistão e o talibã tenha se “modernizado” com
tecnologias de alto padrão técnico.
Bibliografia
consultada:
Afeganistão:
a história de um país em ponto estratégico apelidado de ‘cemitério
de impérios’.
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57516844
ALI,
Tariq.
https://newleftreview.org/sidecar/posts/debacle-in-afghanistan?fbclid=IwAR1gsgokboGEq9ahNVFHtyV56TyD-RAOYkY7yrKYL6kGx8dmJ6NuQTkQizs.
Acesso
em agosto de 2021.
ESCOBAR,
Pepe. https://asiatimes.com/2021/08/a-saigon-moment-looms-in-kabul/ 13 de agosto.
IDEM.
https://www.unz.com/pescobar/how-russia-china-are-stage-managing-the-taliban/?email=daily&__cf_chl_jschl_tk__=pmd_q7y8hyTzbEREZoOitvFFAAW8kn_PlRGSNI1pd509KaA-1629555728-0-gqNtZGzNAiWjcnBszQiR
HUSAIN,
Fahd.
https://www.dawn.com/news/1640212/red-zone-files-telling-the-pakistan-story
August 12, 2021
RACHMAN,
Gideon. Financial
Times, 26 de junho de 2010.
VISENTINI,
Paulo, G. Fagundes et ali. Revoluções e regimes marxistas.
Rupturas, experiências e impacto internacional. Ed. Leitura XXI. 1ª
reimpressão. 2013, pps. 328-337.