terça-feira, 24 de março de 2020

CORONACRISE: A “fagulha” do vírus acende a chama que começa a consumir o capitalismo pelo centro


D
esde os últimos dias de dezembro do ano passado, quando teve início a propagação do coronavírus na China e depois para o planeta, agora se faz necessária uma análise alicerçada na política a partir do vislumbre eminentemente técnico. Em pauta, como sustar a pandemia numa conjuntura na qual a maioria dos países afetados são proponentes encardidos do ultraneoliberalismo (ou neoliberalistas), muitos fascistizados, que medidas adotaram e como ficam os trabalhadores dentro de uma crise sistêmica sem precedentes do capitalismo? Qual o significado de “ficar em casa” como prevenção pandêmica? O papel da mídia ao espalhar a torto e direito um amplo processo de hiperinformação sobre a população, isto é positivo? O Brasil bolsonarizado vai ter capacidade técnica ou vontade que seja para superar a crise? Numa etapa em que os Estados Unidos deflagram a chamada “guerra híbrida” como não ser seduzido por “teorias da conspiração” e fakenews? São perguntas cruciais que surgem diante de tamanho desafio e podem indicar a resolução dos problemas levantados. Qual o alcance da crise atual e o que despertou a queda brusca de mercados bursáteis, tem a ver com o coronavírus?

CERTO DIA TRANQUILO DE OUTUBRO DE 2019, EM NOVA YORQUE, UM “ENSAIO GERAL”

Num calmo e ensolarado dia 18 de outubro de 2019 reuniam-se em Nova Yorque banqueiros, empresários de grandes grupos econômicos e instituições financeiras que têm sede em todo o mundo. O evento chamou-se “Event 201”, organizado pela agência Bloomberg1 cujo objetivo era discutir possível crise econômica derivada de um “surto intercontinental grave e altamente transmissível”. No programa estava o simulacro de pandemia feito como exercício de alto nível, no Hotel The Pierre em Manhattan. O exercício consistia em criar um vírus fictício, ora difundido pela internet pelos organizadores do evento (assista ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=BfRWJN1aSpY). Tudo com um realismo marcante sob a forma de uma “brincadeira” feita para os donos do mundo!

Os organizadores foram ninguém menos do que o Centro John Hopkins para a Segurança da Saúde, em associação com o Fórum Econômico Mundial e a Fundação Bill e Melinda Gates [https://www.bloomberg.com/press-releases/2019-10-16/johns-hopkins-center-for-health-security-world-economic-forum-and-bill-melinda-gates-foundation-host-pandemic-exercise-and]. “Alto nível”, como podemos perceber!

O encontro tinha perfil semiclandestino, pois não era permitida a divulgação. Apesar de enfadonho, vale a pena elencar a nata da economia mundial participante: Ryan Morhard, assessor em matéria de saúde e economia do Fórum Econômico Mundial; Chris Elias, presidente da Divisão de Desenvolvimento Mundial da Fundação Bille Melinda Gates; Tim Evans, ex diretor de saúde do Banco Mundial; Avril Haines, ex-subdiretor da CIA; Sofia Borges, em representação das Nações Unidas; Stanley Bergman, presidente e CEO da Henry Schein (empresa distribuidora mundial de fornecimentos médicos e dentais, inclusive vacinas, produtos farmacêuticos, serviços financeiros e equipamentos); Paul Stoffels, diretor científico da Johnson & Johnson; Matthew Harrington, diretor de operações globais da Edelman (uma das maiores firmas do mundo de consultoria de marketing e relações públicas) e outros. Morhard em tom “profético” afirmou “Criar eventos como este custa mais de um ano de planificação e um investimento de centenas de milhares de dólares, mas as lições aprendidas são incalculáveis” (idem).

Um mês após o encontro surgiu o primeiro caso de COVID-19, de acordo com o The Guardian (7/11/2019): “O primeiro caso de alguém que sofria de Covid-19 remonta a 7 de Novembro, segundo informações dos meios de comunicação sobre dados não publicados do governo chinês”. Antes mesmo, a agência Bloomberg publicaria um áudio alertando para o despertar da pandemia [https://www.bloomberg.com/news/audio/2019-11-04/preparing-for-the-next-pandemic-audio]: “Preparando-nos para a próxima pandemia: à medida que o surto de coronavírus se aproxima de uma pandemia, os líderes mundiais e os funcionários de saúde lutam por conter as consequências. Isso provocou quarentenas e outras ações de emergência em todo o mundo. É um cenário que foi planejado há apenas alguns meses, numa reunião de líderes em finanças globais, políticas e cuidados médicos. Janet Wu, da Bloomberg, esteve ali e nos traz esta informação”. No dia 11 de março de 2020 mais de 200 corporações do mundo todo se reuniam para discutir sobre a crise, sendo que as principais são as empresas que participaram do Event 201!

CORONACRISE SERIA ESTAFA DO MODELO ECONÔMICO?

Wuham o epicentro de propagação do coronavírus para os cinco continentes conforma sem sombra de dúvidas uma crise epidemiológica concomitante à econômica. No entanto, a atual crise é completamente diferente das que a precederam no cenário internacional, pois marca os caminhos da recessão econômica em nível mundial: ela tem início na esfera produtiva, enquanto a de 2008 originou-se nos subprimes (bolha especulativa creditícia) e foi paliativamente suprida pelos bancos centrais injetando recursos públicos nas instituições financeiras, adiando temporariamente iminente colapso do sistema financeiro mundial.

Colhemos hoje, os frutos podres amealhados das soluções contábeis advindas da crise de 2008. A coronacrise vai interferir na interdependência produtiva em escala planetária, incidindo principalmente sobre o petróleo e sobre as fontes energéticas. Aqui, os gigantescos esforços dos bancos centrais para manter em pé os mercados irão se bater com a constante queda da taxe de lucro das empresas multi e transnacionais, haja vista a predominância da volatibilidade do capital face à disfunção existente entre os mercados.

As ações assimiladas ao Event 201 em defesa do capital expuseram como solução o distanciamento social, o que agrava sumamente a queda da demanda real ou reprimida, ou seja, fizeram com que os fluxos de capital ficassem paralisados, obrigando que o Estado “compre” títulos privados sem valor (moedas podres). Para os neoliberais, o Estado deve arcar com os prejuízos ao estatizar os fluxos de renda, o que em resumo significa os trabalhadores é que vão assumir os ônus da crise em todos os sentidos, vão empobrecer mais e mais, ficar doentes e morrer praticamente à míngua.

Por exemplo, nos EUA 60 milhões de pessoas não têm qualquer assistência médica, ainda mais considerando-se que um teste para verificação de contaminação custa em média mil dólares! Ao iniciar a crise o governo Trump não colocou qualquer medida de contenção, só há pouco quando tornou-se endêmica. Chega a ser paradoxal que a maior potência militar e econômica do mundo seja o elo mais fraco no enfrentamento ao coronavírus.

DESMISTIFICANDO SIGNIFICADOS: O VÍRUS NÃO FOI RESPONSÁVEL PELA QUEDA DAS BOLSAS

De acordo com o professor Eric Toussaint, “a grande mídia afirma de maneira ultrassimplificadora que esta queda generalizada das bolsas de valores é provocada pelo coronavírus e esta explicação é retomada amplamente nas redes sociais. Ora, não é o coronavirus e sua expansão que constituem a causa da crise, a epidemia é apenas um elemento detonador. Todos os fatores de uma nova crise financeira estão reunidos há vários anos, pelo menos desde 2017-2018” [http://www.cadtm.org/Non-le-coronavirus-n-est-pas-le-responsable-de-la-chute-des-cours-boursiers]. Em suas palavras, foi apenas a “fagulha” que acendeu o fogo da crise econômica. Em decorrência da desaceleração da economia mundial, a queda brusca das bolsas já era prevista antes do surgimento do coronavírus, uma vez que os títulos de dívida aumentaram desproporcionalmente ao aumento real da produção, causando uma concentração de renda quase incomensurável (os 1% mais ricos cada vez mais ricos, o grande Capital). Empresas privadas passaram a vender estes títulos desvalorizados, provocando um declínio em suas cotações e, consequentemente, a queda das bolsas. Há cerca de 30 anos os neoliberais deixaram de investir na produção, passando a privilegiar o rentismo exacerbado e o caráter essencialmente volátil do capital. O resultado disso é a financeirização da economia capitalista. Toussant alerta: “As crises bancárias e bolsistas ressurgiram quando os governos deram todas as liberdades ao Grande Capital para fazer o que quisesse no setor financeiro” (Idem), cujos lucros estavam voltados ao capital fictício (especulativo) que não repousa em bases materiais nem na exploração direta do trabalho humano e nos produtos in natura.

Enfim, o coronavírus tem sido apenas o detonador da crise mundial, a qual deve a causas bem mais profundas. Em 2019 o mercado mundial praticamente estagnou, fazendo com que governos adotassem medidas austeras de contenção de despesas, destruindo qualquer bem-estar para os trabalhadores. Razão pela qual despontaram tantos regimes neofascistas pelo mundo que colocam em prática o desmonte dos serviços públicos. Neste ínterim, entra a coronacrise, como um elemento que entrou pelas fissuras expostas do sistema capitalista em sua ineficiência social!

Governo federal não sabe o que fazer perante a crise
NUM BRASIL BOLSONARIZADO NÃO HÁ NENHUM APORTE ECONÔMICO PARA SUSTAR A CRISE

Os impactos imediatos da pandemia mundial numa sociedade tremendamente desigual como a do Brasil, cujos trabalhadores estão imersos na informalidade e no desemprego estrutural podem ser devastadores. 40% da mão de obra está na informalidade ou no trabalho precarizado; 12% está desempregada. A nossa moeda é uma das mais fracas do mundo, a qual já foi desvalorizada em relação ao dólar cerca de 30% em apenas três meses. As premissas futuras são aprofundamento do desemprego, maior vulnerabilidade social, queda de arrecadação, colapso do sistema de saúde, sobrecarda absurda sobre os profissionais da saúde, redução das pesquisas desde a PEC do fim do mundo do governo Temer.

Neste quadro de calamidade, a equipe econômica (nem se fala do Bolsonaro) não dispõe de dinheiro novo no combate à pandemia, apenas faz remanejos aleatórios de verbas. OLIVEIRA avalia “Se em todo o mundo foram apresentados ousados pacotes fiscais, no Brasil o crédito extraordinário no valor de R$ 5,099 bilhões não representa recursos novos, mas remanejamento orçamentário dentro do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde”2.

Assim, decisões técnicas estão indissoluvelmente atadas a uma concepção política, sendo que esta última predomina. Por pura ortodoxia ultraneoliberal (ou incapacidade real) do ministro da economia, Paulo Guedes. Nem na área da saúde, nem na economia há decisões firmes; ao contrário, são claudicantes e visam salvaguardar somente um lado: o capital. Tal orientação e modus operandi ficaram cristalinos na edição da MP 927 (permitindo demissões em massa de trabalhadores), expedida na calada da noite de domingo (22/03) e revogada logo em seguida, limitada conscientemente pela reacionária LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada por FHC em maio de 2000).

Sem superação do quadro recessivo aberto em 2015, cujas forças retrógradas atuaram para depor a presidenta Dilma Roussef [https://inquietudegeral.blogspot.com/2016/10/do-mensalao-as-jornadas-de-junho-de.html] via golpe institucional capitaneada pela FIESP, o PIB brasileiro hoje é 3% menor do que o de 2014. Antes da crise, previsões davam-nos uma taxa de crescimento de 2%, mas recém-revista para algo próximo de 0,5% em 2020. OLIVEIRA vem completar esse raciocínio: “Grande parte das medidas anunciadas pelo governo não tratam de injeção de novos recursos na economia. São meros adiamentos de pagamentos que as empresas deveriam fazer ou adiantamentos de recursos que o governo já iria fazer para as famílias ou para as empresas” [Nota do Cecon]. O governo federal decisivamente não sabe o que fazer, muda de tom a toda hora, pois não querem ir além do arcabouço de austeridade e ideologia ultraneoliberais, mesmo perante um quadro de extrema gravidade e que tende a piorar nos próximos dias, alimentado pela mídia corporativa com suas hiperinformações praticamente 24 horas por dia, o que causa ainda mais confusão no grande público.

AS PANDEMIAS EXISTIAM MUITO ANTES DA GLOBALIZAÇÃO E A NOMINAÇÃO DO “FICAR EM CASA”

Ficar em casa esperando que Bolsonaro nos 'salve'?
Na segunda metade do século XIV, na Europa, o bacilo Yersinia pestis, a peste negra quase devastou o continente e impôs uma crise sem igual em termos econômicos, políticos e sociais. Tanto que causou revoltas camponesas, a Guerra dos Cem Anos, o declínio da cavalaria medieval e prenunciou o fim do feudalismo. Durante a ocupação espanhola da América a varíola fez estragos que dizimaram civilizações inteiras, a Febre Amarela no Haiti em 1801, a Peste Bovina provocada pela expansão colonial europeia na África entre 1888 e 1897, a gripe espanhola ao fim da primeira guerra mundial que provocou a morte de 50 milhões de pessoas. Só para citar algumas. As soluções apresentadas por governos era o isolamento e/ou confinamento, evidenciando um claro método medieval de contenção de pragas.

É possível imaginar isso em pleno Século XXI? Quando estamos adentrando na era da tecnologia quântica? Eis as palavras do autor de Sapiens, Yuval Noah Harari, em um belíssimo e frondoso artigo: “a história indica que a proteção real vem do compartilhamento de informações científicas confiáveis e da solidariedade global. Quando um país é atingido por uma epidemia, deve estar disposto a compartilhar honestamente informações sobre o surto, sem medo de uma catástrofe econômica...” [https://time.com/5803225/yuval-noah-harari-coronavirus-humanity-leadership/]. Mandatários de poder vêm fazendo o oposto, espelhando-se no mais ignóbil exemplo de Trump e seu comensal da morte Bolsonaro, negando a ciência e a cooperação mundial. Empresas realinham seus negócios preparando-se para vender seus produtos (respiradores, produtos médicos etc.) a Estados e empenham-se nesta perspectiva e em demitir trabalhadores. O lucro ainda é a meta em meio à crise que assola não mais um país, mas a Humanidade!

A resposta do capital, “ficar em casa”, resume a incapacidade de governos em atender a demanda da doença na rede pública. Recurso medieval, mas que ainda se faz necessário diante da escassez de recursos técnicos e inoperância da burguesia mundial, numa fase em que se desenvolve a tecnologia 5G e se pensa conquistar o espaço interestelar! Como podemos constatar, a incursão do coronavírus no planeta vai muito além da questão de “saúde pública”, implica gestão de crise e está intimamente relacionada com o deflagrar da guerra híbrida no plano militar, político, econômico e ideológico [https://inquietudegeral.blogspot.com/2020/02/coronavirus-e-geopolitica-colocar-china.html] e à anarquia do sistema capitalista que nos rege a vida. Mais do que nunca, está colocada a máxima: “socialismo ou barbárie”. Somente nesta perspectiva é que as demandas de vida poderão ser atendidas em benefício de TODA Humanidade e não para um punhado de ricaços capitalistas.


Notas:

1 Bloomberg L.P. é uma empresa de tecnologia e dados para o mercado financeiro e agência de notícias operacional em todo o mundo com sede em Nova York.

2 OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de et ali. A Coronacrise: natureza, impactos e medidas de enfrentamento no Brasil e no mundo. Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica - IE/UNICAMP. Nota do Cecon, n.9, março de 2020.