sexta-feira, 3 de abril de 2020

FILME “O POÇO”: Imersão do indivíduo em seus processos (des)civilizatórios na sociedade de consumo ultraneoliberal e a intrépida jornada de Goreng


O
diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, autor de perturbantes obras cinematográficas do quilate de A boca do lobo (2004), O caixão de cristal (2016)1, criou uma instigante metáfora em tempo mais do que presente da realidade que nos emoldura presa ao insano social do consumo capitalista: O Poço, filme concluído em 2019. Uma narrativa sombria que reflete a condição humana sensitiva imposta pelo ultraneoliberalismo como um todo, e nos transparece como um fardo ao assisti-la. O autor faz com que submerjamos num mundo distópico dominado pelo instinto primário de sobrevivência, sobejamente metafísico-delirante, cruel, cujos personagens não têm rumo, nem esperanças, tampouco futuro, exceto um, o excelente Iván Massagué (o Goreng), protagonista da trama. Logo no início Urrutia deixa claro seu método e como deve ser compreendido o filme: “Existem três tipos de pessoas: as que estão em cima, as que estão embaixo e as que caem”. São paradoxais as inúmeras cenas ao longo do filme, as quais encerram profusão de cinismo, profunda arrogância acrescida de desprezo pelos de baixo expresso na atuação de Zorion Eguileor (o Trimagasi), individualismo e selvageria contumazes que, por fim, amalgamam-se em perigosas amizades (Emilio Buale, o Baharat), única e mais fiel a aliar-se com o nosso protagonista.

EXACERBAÇÃO DOS INSTINTOS COMO SUBSTRATO DA “FRUSTRAÇÃO CULTURAL”

O diretor do filme: Galder Gaztelu-Urrutia
Mergulhamos nos 90 minutos do filme no estado instintivo humano a se tomarmos como ponto de partida Sigmund Freud em sua obra “O mal-estar da civilização”2. Contudo, em efeito contrário! Freud abordou a sociedade civilizada como inibidora dos comportamentos, permitindo que vivamos em comunidade, acomodando instintos mais primitivos como uma característica inata aos seres humanos. Para sobreviver em comunidade, segundo o mestre da psicanálise, temos que reprimir os instintos violentos naquilo que convencionou como “id”, ou onde são “depositados” no inconsciente em beneplácito de seu “alterego” os sujeitos de ação externa. Tanto que os civilizados trazem consigo uma insatisfação ad aeternum na sua busca da felicidade e conforto, mas esta se manifesta na totalidade do grupo, não enquanto individualidade. Eis suas palavras: “... a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos... é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar... como pode ser possível privar de satisfação um instinto... se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.” (FREUD, p. 178, 1978). Enfim, a civilização é em última instância o produto relacional entre indivíduos, o que de fato o filme representa total distopia em relação a este entendimento!

“UM CONVITE À REFLEXÃO SOBRE A INJUSTA PARTILHA DA RIQUEZA NA SOCIEDADE”

O instinto e a violência psicótica
Afora os aspectos culturais e a psique humana, o que mais nos revela o filme de Urrutia é o modelo de sociedade à qual pertencemos. Os de cima controlam e os de baixo sobrevivem cada qual em seu extrato piorado em seus níveis do poço. Desde de cima a sociedade estratificada a partir dos que obedecem e os que mandam, metaforizados na produção da excelência em comida. Os de baixo têm como exclusiva preocupação quase instintiva, “o que comer?”, obtendo como resposta “o que sobra de cima” e quanto mais baixo for o nível menos se tem o que comer. Nestes aspectos relacionais entre “humanos” o objetivo é comer, não importando a “renúncia ao instinto”. E mais, é um lugar em que tudo “é óbvio” e inquestionável. Goreng penetra neste mundo irracional com um livro na mão e logo vai percebendo que quem lê não é muito bem aceito e não sobreviverá em meio a pessoas psicóticas. Quem questiona é tido como “comunista” no diálogo entre Trimagasie e Goreng. O cínico e sádico Trimagasi (amigo?) postula que uma faca é o único instrumento que pode salvá-lo da morte, como instinto violento não reprimido. Ao abordar a elite esbanjadora “de cima” e os pobres “de baixo”, o autor chama atenção para a luta de classes e a situação criada pelos de cima e a inquestionabilidade aceita pelos de baixo.

Contudo, Urrutia diz que “o filme é um convite à reflexão sobre a injusta partilha da riqueza na sociedade. É um dos problemas mais importantes, o filme se enfrenta com o espectador nos limites de sua própria solidariedade. Você seria solidário quando seu próprio bem-estar dependesse dessa solidariedade? Não é um filme contra os de cima, ou contra os de baixo. Coloca o espectador em um estado de bonança ou de pobreza e lhe convida a pensar o que você faria.”3

Corpos que caem e a descivilização da sociedade burguesa
O processo descivilizatório fica ipsis litteris cristalino quando Trimagasi e Goreng descem ao nível 171 (começaram no 48), onde o cínico dá sua cartada: “é melhor comer do que ser comido”. Defronta-se com a mulher que vive a descer (Alexandra Masangkay, a Miharu) para devorar os de baixo, a mais pura representação da barbárie e primitivista que se alimenta de pessoas e até de um cãozinho. Em outro nível conhece outra mulher (Antonia San Juan, a Imoguiri), esta mais racional e sensível, embora crente na “administração” (elite ou burguesia) que tenta convencer os de baixo a comer apenas o suficiente e poupar para os mais abaixo, acreditando na pseudotese da conformação de um centro vertical de autogestão. Percebe que é inútil o convencimento. Isto na metade do filme. Goreng, inconformado com a resistência em acatar sugestões parte para a ameaça de “cagar na comida”. Chocada, Imoguiri pergunta: e os de cima? Goreng retruca: “não consigo cagar para cima!”. Tudo como se a “frustração cultural” fosse a causa das hostilidades (FREUD, 1978), tendo o eu como presernte do subjuntivo, suas idiossincrasias presas às recusas de mudanças e aos distúrbios decorrentes da perda econômica [FREUD, 1978], no caso a comida.

OS MEIOS JUSTIFICAM O FIM, A IDEIA DE LIBERDADE E ESPERANÇA CONTRA A OPRESSÃO

Dispomo-nos diante de um claro dilema freudiano: “Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização” [FREUD, p. 170], precisamente onde se encaixa Goreng.

No correr do filme Goreng procura uma razão para viver: a liberdade! Sua trajetória para é algo bem peculiar: é preciso descer, adotar a violência (armada) para atingir seus objetivos anticonformação, como se os meios justificassem o fim! Ninguém lhe dá ouvidos, salvo Baharat, não por acaso um homem negro e religioso que os de cima cagam em sua cara e, incentivado por seu guia espiritual que lhe mostra o caminho a seguir. Goreng e Baharat tomam a decisão de descer até o final do poço, o quase infindável caminho para se chegar a uma solução que encerrasse suas agonias: entregar uma mensagem aos de cima, no nível superior. Surpreendentemente Goreng, a quem o diretor deu uma forma poética, encontra como avisar que sobreviveu no último nível de existência: “nenhuma mudança é espontânea”, afirma o personagem, pondo a termo o caráter distópico e descivilizatório vivenciados com todos os seus horrores ao longo do filme. Tem que haver um fio condutor que acenda a chama da utopia, a qual mesmo em solidão pode ser o caminho para a liberdade ao encontrar a semente para a transformação!


Notas:


2 FREUD, Sigmund. Mal-Estar da civilização. Rio de Janeiro: Abril, 1978. Coleção “Os pensadores”. (pp. 133-194). Original de 1929, 1930.