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diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, autor de perturbantes obras cinematográficas do quilate de A
boca do lobo (2004), O caixão de cristal (2016)1, criou uma instigante
metáfora em tempo mais do que presente da realidade que nos emoldura presa ao
insano social do consumo capitalista: O
Poço, filme concluído em 2019. Uma narrativa sombria que reflete a condição
humana sensitiva imposta pelo ultraneoliberalismo como um todo, e nos
transparece como um fardo ao assisti-la. O autor faz com que submerjamos
num mundo distópico dominado pelo instinto primário de sobrevivência,
sobejamente metafísico-delirante, cruel, cujos personagens não têm rumo, nem
esperanças, tampouco futuro, exceto um, o excelente Iván Massagué (o
Goreng), protagonista da trama. Logo no
início Urrutia deixa claro seu método e como deve ser compreendido o filme:
“Existem três tipos de pessoas: as que estão em cima, as que estão embaixo e as
que caem”. São paradoxais as inúmeras cenas ao longo do filme, as quais
encerram profusão de cinismo, profunda arrogância acrescida de desprezo pelos
de baixo expresso na atuação de Zorion Eguileor (o Trimagasi), individualismo e
selvageria contumazes que, por fim, amalgamam-se em perigosas amizades (Emilio
Buale, o Baharat), única e mais fiel a aliar-se com o nosso protagonista.
EXACERBAÇÃO DOS INSTINTOS COMO SUBSTRATO DA “FRUSTRAÇÃO
CULTURAL”
O diretor do filme: Galder Gaztelu-Urrutia |
Mergulhamos nos 90 minutos do filme no estado instintivo
humano a se tomarmos como ponto de partida Sigmund Freud em sua obra “O
mal-estar da civilização”2. Contudo, em efeito contrário! Freud
abordou a sociedade civilizada como inibidora dos comportamentos, permitindo
que vivamos em comunidade, acomodando instintos mais primitivos como uma
característica inata aos seres humanos. Para sobreviver em comunidade, segundo
o mestre da psicanálise, temos que reprimir os instintos violentos naquilo que
convencionou como “id”, ou onde são “depositados” no inconsciente em
beneplácito de seu “alterego” os sujeitos de ação externa. Tanto que os
civilizados trazem consigo uma insatisfação ad
aeternum na sua busca da felicidade e conforto, mas esta se manifesta na
totalidade do grupo, não enquanto individualidade. Eis suas palavras: “... a
civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe
exatamente a não-satisfação de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’
domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos... é a
causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar... como
pode ser possível privar de satisfação um instinto... se a perda não for
economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios
decorrerão disso.” (FREUD, p. 178, 1978). Enfim, a civilização é em última
instância o produto relacional entre indivíduos, o que de fato o filme
representa total distopia em relação a este entendimento!
“UM CONVITE À REFLEXÃO SOBRE A INJUSTA PARTILHA DA RIQUEZA
NA SOCIEDADE”
O instinto e a violência psicótica |
Afora os aspectos culturais e a psique humana, o que mais
nos revela o filme de Urrutia é o modelo de sociedade à qual pertencemos. Os de
cima controlam e os de baixo sobrevivem cada qual em seu extrato piorado em
seus níveis do poço. Desde de cima a sociedade estratificada a partir dos que
obedecem e os que mandam, metaforizados na produção da excelência em comida. Os
de baixo têm como exclusiva preocupação quase instintiva, “o que comer?”,
obtendo como resposta “o que sobra de cima” e quanto mais baixo for o nível
menos se tem o que comer. Nestes aspectos relacionais entre “humanos” o
objetivo é comer, não importando a “renúncia ao instinto”. E mais, é um lugar
em que tudo “é óbvio” e inquestionável. Goreng penetra neste mundo irracional
com um livro na mão e logo vai percebendo que quem lê não é muito bem aceito e
não sobreviverá em meio a pessoas psicóticas. Quem questiona é tido como
“comunista” no diálogo entre Trimagasie e Goreng. O cínico e sádico Trimagasi (amigo?)
postula que uma faca é o único instrumento que pode salvá-lo da morte, como
instinto violento não reprimido. Ao abordar a elite esbanjadora “de cima” e os
pobres “de baixo”, o autor chama atenção para a luta de classes e a situação
criada pelos de cima e a inquestionabilidade aceita pelos de baixo.
Contudo, Urrutia diz que “o filme é um convite à reflexão sobre a injusta partilha da riqueza na
sociedade. É um dos problemas mais importantes, o filme se enfrenta com o
espectador nos limites de sua própria solidariedade. Você seria solidário
quando seu próprio bem-estar dependesse dessa solidariedade? Não é um filme
contra os de cima, ou contra os de baixo. Coloca o espectador em um estado de
bonança ou de pobreza e lhe convida a pensar o que você faria.”3
Corpos que caem e a descivilização da sociedade burguesa |
O processo descivilizatório fica ipsis litteris cristalino quando Trimagasi e Goreng descem ao nível
171 (começaram no 48), onde o cínico dá sua cartada: “é melhor comer do que ser
comido”. Defronta-se com a mulher que vive a descer (Alexandra Masangkay, a
Miharu) para devorar os de baixo, a mais pura representação da barbárie e
primitivista que se alimenta de pessoas e até de um cãozinho. Em outro nível
conhece outra mulher (Antonia San Juan, a Imoguiri), esta mais racional e
sensível, embora crente na “administração” (elite ou burguesia) que tenta
convencer os de baixo a comer apenas o suficiente e poupar para os mais abaixo,
acreditando na pseudotese da conformação de um centro vertical de autogestão.
Percebe que é inútil o convencimento. Isto na metade do filme. Goreng,
inconformado com a resistência em acatar sugestões parte para a ameaça de
“cagar na comida”. Chocada, Imoguiri pergunta: e os de cima? Goreng retruca:
“não consigo cagar para cima!”. Tudo como se a “frustração cultural” fosse a
causa das hostilidades (FREUD, 1978), tendo o eu como presernte do subjuntivo,
suas idiossincrasias presas às recusas de mudanças e aos distúrbios decorrentes
da perda econômica [FREUD, 1978], no caso a comida.
OS MEIOS JUSTIFICAM O FIM, A IDEIA DE LIBERDADE E ESPERANÇA
CONTRA A OPRESSÃO
Dispomo-nos diante de um claro dilema freudiano: “Quando,
com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização;
quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua
imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando
inimigos da civilização” [FREUD, p. 170], precisamente onde se encaixa Goreng.
No correr do filme
Goreng procura uma razão para viver: a liberdade! Sua trajetória para é algo
bem peculiar: é preciso descer, adotar a violência (armada) para atingir seus
objetivos anticonformação, como se os meios justificassem o fim! Ninguém
lhe dá ouvidos, salvo Baharat, não por acaso um homem negro e religioso que os
de cima cagam em sua cara e, incentivado por seu guia espiritual que lhe mostra
o caminho a seguir. Goreng e Baharat tomam a decisão de descer até o final do
poço, o quase infindável caminho para se chegar a uma solução que encerrasse
suas agonias: entregar uma mensagem aos de cima, no nível superior.
Surpreendentemente Goreng, a quem o diretor deu uma forma poética, encontra
como avisar que sobreviveu no último nível de existência: “nenhuma mudança é espontânea”, afirma o personagem, pondo a termo o caráter distópico e
descivilizatório vivenciados com todos os seus horrores ao longo do filme. Tem
que haver um fio condutor que acenda a chama da utopia, a qual mesmo em solidão
pode ser o caminho para a liberdade ao encontrar a semente para a transformação!
Notas:
2 FREUD, Sigmund. Mal-Estar da
civilização. Rio de Janeiro: Abril, 1978. Coleção “Os pensadores”. (pp.
133-194). Original de 1929, 1930.
3 https://www.eitb.eus/es/cultura/cine/detalle/6802686/entrevista-galder-gazteluurrutia-pelicula-el-hoyo-/.
Acesso em 2 de abril de 2020.