Breton e Trotsky no México, 1938 |
André Breton, poeta surrealista francês, autor de “Amor
Louco” e “Nadja”, inimigo ferrenho de Stalin e do “realismo socialista” (arte
oficial do stalinismo) e do engessamento nazifascista da arte, vai para o
México em abril de 1938 para encontrar Trotsky. Após inúmeras conversas e um
intenso debate sobre a situação da arte e as perspectivas revolucionárias para
a produção artística e intelectual, lançam o manifesto “Por Uma Arte
Revolucionária Independente” em julho de 1938.
O Manifesto Surrealista vem a público numa etapa em que as
condições políticas em nível mundial são as mais reacionárias possíveis: os
ovos da serpente do fascismo estão sendo chocados e na URSS stalinisada vários
assassinatos de dirigentes históricos do bolchevismo aconteciam sob os chamados
Processos de Moscou. A arte, como um todo, estava sucumbindo a postulações
formalistas e convenções artificiais tanto por parte do regime hitlerista como
o do stalinista, cada um com seus vieses (sem sinal de igual entre ambos). Para
o Surrealismo, fortemente influenciado pelas elaborações psicanalistas de
Sigmund Freud, era fundamental o papel do inconsciente no processo criativo, o
que estava sendo destruído pelo “racionalismo” de convenções permeadas burocraticamente
por políticas de Estado. Prega, outrossim, a libertação dos poderes da
imaginação, onde a psicanálise, arte e política se unem no ideal de ego, o
qual, por sua vez, se ergue contra o establishment ao renovar os poderes do
mundo interior, do “id”. Ou seja, a emancipação do espirito como engenho da
condição livre do Homem, da sua inteira emancipação do modo de produção que lhe
oprime, restringe-lhe a liberdade.
“A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado”.
“Se,
para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir
um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela
deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de
liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de
comando!”
Por uma Arte Revolucionaria Independente
André Breton e Leon Trotsky
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Pode-se pretender sem exagero que nunca a civilização humana
esteve ameaçada por tantos perigos quanto hoje. Os vândalos, com o auxílio de
seus meios bárbaros, isto é, deveras precários, destruíram a civilização antiga
num canto limitado da Europa. Atualmente, é toda a civilização mundial, na
unidade de seu destino histórico, que vacila sob a ameaça das forças
reacionárias armadas com toda a técnica moderna. Não temos somente em vista a
guerra que se aproxima. Mesmo agora, em tempo de paz, a situação da ciência e
da arte se tornou absolutamente intolerável.
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Naquilo que ela conserva de individualidade em sua gênese,
naquilo que aciona qualidades subjetivas para extrair um certo fato que leva a
um enriquecimento objetivo, uma descoberta filosófica, sociológica, científica
ou artística aparece como o fruto de um acaso precioso, quer dizer, como uma
manifestação mais ou menos espontânea da necessidade. Não se poderia desprezar tal
contribuição, tanto do ponto de vista do conhecimento geral (que tende a que a
interpretação do mundo continue), quanto do ponto de vista revolucionário (que,
para chegar à transformação do mundo, exige que tenhamos uma ideia exata das
leis que regem seu movimento). Mais particularmente, não seria possível
desinteressar-se das condições mentais nas quais essa contribuição continua a
produzir-se e, para isso, zelar para que seja garantido o respeito às leis
específicas a que está sujeita a criação intelectual.
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Ora, o mundo atual nos obriga a constatar a violação cada
vez mais geral dessas leis, violação à qual corresponde necessariamente um
aviltamento cada vez mais patente, não somente da obra de arte, mas também da
personalidade “artística”. O fascismo hitlerista, depois de ter eliminado da
Alemanha todos os artistas que expressaram em alguma medida o amor pela
liberdade, fosse ela apenas formal, obrigou aqueles que ainda podiam consentir
em manejar uma pena ou um pincel a se tornarem os lacaios do regime e a
celebrá-lo de encomenda, nos limites exteriores do pior convencionalismo.
Exceto quanto à propaganda, a mesma coisa aconteceu na URSS durante o período
de furiosa reação que agora atingiu seu apogeu.
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É evidente que não nos solidarizamos por um instante sequer,
seja qual for seu sucesso atual, com a palavra de ordem: “Nem fascismo nem
comunismo”, que corresponde à natureza do filisteu conservador e atemorizado,
que se aferra aos vestígios do passado “democrático”. A arte verdadeira, a que
não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma
expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que
ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da
sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a criação intelectual das
cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que
só os gênios isolados atingiram no passado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que só
a revolução social pode abrir a via para uma nova cultura. Se, no entanto,
rejeitamos qualquer solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS, é
precisamente porque no nosso entender ela não representa o comunismo, mas é o
seu inimigo mais pérfido e mais perigoso.
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Sob a influência do regime totalitário da URSS e por
intermédio dos organismos ditos “culturais” que ela controla nos outros países,
baixou no mundo todo um profundo crepúsculo hostil à emergência de qualquer
espécie de valor espiritual. Crepúsculo de abjeção e de sangue no qual,
disfarçados de intelectuais e de artistas, chafurdam homens que fizeram do
servilismo um trampolim, da apostasia um jogo perverso, do falso testemunho
venal um hábito e da apologia do crime um prazer. A arte oficial da época
estalinista reflete com uma crueldade sem exemplo na história os esforços
irrisórios desses homens para enganar e mascarar seu verdadeiro papel mercenário.
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A surda reprovação suscitada no mundo artístico por essa
negação desavergonhada dos princípios aos quais a arte sempre obedeceu, e que
até Estados instituídos sobre a escravidão não tiveram a audácia de contestar
tão totalmente, deve dar lugar a uma condenação implacável. A oposição
artística é hoje uma das forças que podem com eficácia contribuir para o
descrédito e ruína dos regimes que destroem, ao mesmo tempo, o direito da
classe explorada de aspirar a um mundo melhor e todo sentimento da grandeza e
mesmo da dignidade humana.
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A revolução comunista não teme a arte. Ela sabe que ao cabo
das pesquisas que se podem fazer sobre a formação da vocação artística na
sociedade capitalista que desmorona, a determinação dessa vocação não pode
ocorrer senão como o resultado de uma colisão entre o homem e um certo número
de formas sociais que lhe são adversas. Essa única conjuntura, a não ser pelo
grau de consciência que resta adquirir, converte o artista em seu aliado
potencial. O mecanismo de sublimação, que intervém em tal caso, e que a
psicanálise pôs em evidência, tem por objeto restabelecer o equilíbrio rompido
entre o “ego” coerente e os elementos recalcados. Esse restabelecimento se
opera em proveito do ”ideal do ego” que ergue contra a realidade presente,
insuportável, os poderes do mundo interior, do “id”, comuns a todos os homens e
constantemente em via de desenvolvimento no futuro. A necessidade de
emancipação do espírito só tem que seguir seu curso natural para ser levada a
fundir-se e a revigorar-se nessa necessidade primordial: a necessidade de
emancipação do homem.
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Segue-se que a arte não pode consentir sem degradação em
curvar-se a qualquer diretiva estrangeira e a vir docilmente preencher as
funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para fins pragmáticos,
extremamente estreitos. Melhor será confiar no dom de prefiguração que é o
apanágio de todo artista autêntico, que implica um começo de resolução
(virtual) das contradições mais graves de sua época e orienta o pensamento de
seus contemporâneos para a urgência do estabelecimento de uma nova ordem.
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A ideia que o jovem Marx tinha do papel do escritor exige,
em nossos dias, uma retomada vigorosa. É claro que essa ideia deve abranger
também, no plano artístico e científico, as diversas categorias de produtores e
pesquisadores. “O escritor, diz ele, deve naturalmente ganhar dinheiro para
poder viver e escrever, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para
ganhar dinheiro... O escritor não considera de forma alguma seus trabalhos como
um meio. Eles são objetivos em si, são tão pouco um meio para si mesmo e para
os outros que sacrifica, se necessário, sua própria existência à existência de
seus trabalhos... A primeira condição da liberdade de imprensa consiste em não
ser um ofício. Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração contra
aqueles que pretendem sujeitar a atividade intelectual a fins exteriores a si
mesma e, desprezando todas as determinações históricas que lhe são próprias,
dirigir, em função de pretensas razões de Estado, os temas da arte. A livre
escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se refere ao campo de
sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito de
reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa
essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob
nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou
amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que
consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa
inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença
em arte.
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Reconhecemos, é claro, ao Estado revolucionário o direito de
defender-se contra a reação burguesa agressiva, mesmo quando se cobre com a
bandeira da ciência ou da arte. Mas entre essas medidas impostas e temporárias
de autodefesa revolucionária e a pretensão de exercer um comando sobre a
criação intelectual da sociedade, há um abismo. Se, para o desenvolvimento das
forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de
plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo,
estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma
autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando! As diversas
associações de cientistas e os grupos coletivos de artistas que trabalharão
para resolver tarefas nunca antes tão grandiosas unicamente podem surgir e
desenvolver um trabalho fecundo na base de uma livre amizade criadora, sem a
menor coação externa.
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Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a
liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo
político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita
“pura” que de ordinário serve aos objetivos mais do que impuros da reação. Não,
nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência
sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em
nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da revolução. No
entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado
subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus
nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma
encarnação artística a seu mundo interior.
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Na época atual, caracterizada pela agonia do capitalismo,
tanto democrático quanto fascista, o artista, sem ter sequer necessidade de dar
a sua dissidência social uma forma manifesta, vê-se ameaçado da privação do
direito de viver e de continuar sua obra pelo bloqueio de todos os seus meios
de difusão. É natural que se volte então para as organizações estalinistas que
lhe oferecem a possibilidade de escapar a seu isolamento. Mas sua renúncia a
tudo que pode constituir sua mensagem própria e as complacências degradantes
que essas organizações exigem dele em troca de certas possibilidades materiais
lhe proíbem manter-se nelas, por menos que a desmoralização seja impotente para
vencer seu caráter. É necessário, desde este instante, que ele compreenda que
seu lugar está além, não entre aqueles que traem a causa da revolução e ao
mesmo tempo, necessariamente, a causa do homem, mas entre aqueles que dão
provas de sua fidelidade inabalável aos princípios dessa revolução, entre
aqueles que, por isso, permanecem como os únicos qualificados para ajudá-Ia a
realizar-se e para assegurar por ela a livre expressão ulterior de todas as
manifestações do gênio humano.
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O objetivo do presente apelo é encontrar um terreno para
reunir todos os defensores revolucionários da arte, para servir a revolução
pelos métodos da arte e defender a própria liberdade da arte contra os
usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos de que o encontro
nesse terreno é possível para os representantes de tendências estéticas,
filosóficas e políticas razoavelmente divergentes. Os marxistas podem caminhar
aqui de mãos dadas com os anarquistas, com a condição que uns e outros rompam
implacavelmente com o espírito policial reacionário, quer seja representado por
Josef Stálin ou por seu vassalo Garcia Oliver.
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Milhares e milhares de pensadores e de artistas isolados,
cuja voz é coberta pelo tumulto odioso dos falsificadores arregimentados, estão
atualmente dispersos no mundo. Numerosas pequenas revistas locais tentam
agrupar a sua volta forças jovens, que procuram vias novas e não subvenções.
Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo fascismo como uma
degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista pelos estalinistas. A
arte revolucionária independente deve unir-se para a luta contra as
perseguições reacionárias e proclamar bem alto seu direito à existência. Tal
união é o objetivo da Federação Internacional da Arte Revolucionária
Independente (FIARI) que julgamos necessário criar.
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Não temos absolutamente a intenção de impor cada uma das ideias
contidas neste apelo, que nós mesmos consideramos apenas um primeiro passo na
nova via. A todos os representantes da arte, a todos seus amigos e defensores
que não podem deixar de compreender a necessidade do presente apelo, pedimos
que ergam a voz imediatamente. Endereçamos o mesmo apelo a todas as publicações
independentes de esquerda que estão prontas a tomar parte na criação da
Federação Internacional e no exame de suas tarefas e métodos de ação.
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Quando um primeiro contato internacional tiver sido
estabelecido pela imprensa e pela correspondência, procederemos à organização
de modestos congressos locais e nacionais. Na etapa seguinte deverá reunir-se
um congresso mundial que consagrará oficialmente a fundação da Federação
Internacional. O que queremos: A independência da arte - para a revolução A
revolução - para a liberação definitiva da arte.
Cidade do México, 25 de julho de 1938